Boticas hesita entre o táxi e o autocarro da manhã

Um ano depois, os habitantes do interior resignaram-se. Gastam as pensões em táxis para chegar ao tribunal, juntam-se para irem de carro ou simplesmente não aparecem

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Em Vila Real parte da Justiça funciona em contentores Diogo Baptista

A advogada Guida Nunes Vaz veste, manhã cedo, a sua toga e prepara-se para a audiência no Tribunal de Chaves. Vai defender uma cliente de Boticas que foi burlada e perdeu mais de oito mil euros. Uma mulher fê-la acreditar que só um bruxo poderia salvar o ouro da família enfeitiçado há anos. A jurista de 63 anos estava preparada para tudo, menos para isto: as testemunhas faltaram porque não conseguiram dinheiro para lá chegar.

A reorganização judiciária, implementada há um ano, atirou o julgamento do Tribunal de Boticas, que encerrou, para Chaves, a 24 quilómetros dali. Os 50 euros de ida e volta em táxi (mais 15 por hora de espera) dissuadiram as testemunhas.

O autocarro sairia mais em conta, pouco mais de quatro euros. Mas a viagem significa chegar a Chaves às 8h30 e esperar uma hora e meia pelo início do julgamento. Como o processo é um pedido de insolvência que corre na instância cível, as testemunhas não pagam multa pela falta, uma vez que não são convocadas pelo tribunal. A responsabilidade de as apresentar é da defesa, que ficou sem elas.

“Telefonei-lhes no dia anterior. Prometeram ir. No dia seguinte, disseram-me ao telefone que afinal não tinham dinheiro para ir de Boticas a Chaves. Sem elas, não pude fazer nada. Isto já começa a acontecer por todo o lado”, lamenta a também delegada da Ordem dos Advogados em Boticas, que trocou uma carreira no jornalismo no Brasil pela advocacia naquela vila.

Nos concelhos onde os tribunais fecharam, a população parece resignada. Uns conformaram-se, outros adaptaram-se.

Há um ano, o pastor Manuel Fernandes, de 63 anos, lamentava os contratempos da reforma que lhe fechou o tribunal de Boticas, a meia hora de caminho. Entretanto, aceitou a realidade e levou de táxi as testemunhas, também pastores, até Chaves, onde foi julgado, em Outubro, por posse de arma ilegal. Pagou 300 euros pelas viagens e pelas refeições de todos. Queixou-se da conta ao juiz, mas “ele nem quis ouvir”. O Ministério da Justiça recordava em 2014 que a lei permite reembolsar as despesas com as viagens, mas “o procedimento é tão complexo que ninguém pede o reembolso”, diz Guida Nunes Vaz.

O pastor, ex-escrivão do serviço de Justiça do Exército nas antigas colónias, chega com uma enxada na mão a fazer as vezes de um cajado, acompanhado por cinco vacas, três cães e Rola, uma égua com nome de pássaro. São horas do jantar quando regressa a casa, em Alturas do Barroso, Boticas, em plena Serra do Barroso, 1100 metros acima do nível do mar, enfiado por um vertiginoso lameiro. Ao fim de um dia de trabalho nos montes, Manuel “soldado” – como é conhecido – e o gado formam uma fila e debruçam-se num açude para levar água à boca.

Foi absolvido? “Não, fui condenado: 1200 euros de multa. Paguei logo. Ficou arrumado”. Já não tem armas? Sorri prolongadamente. “Aquela não... então não havia de ter armas? Tenho outras. Mas para as registar preciso de pedir o cadastro no tribunal. Lá tenho eu de ir a Chaves...”, diz com um esgar que faz adivinhar o que ficará adiado.

Os poucos mais de 300 habitantes de Alturas do Barroso sobrevivem com o pouco que tiram da terra. O pastor tem um subsídio de cinco mil euros por ano para a criação de gado, mas há meses em que, diz, não tem sequer “cem euros”. Dispôs-se, no entanto, a gastar mais do que isso em táxis. Na última viagem a Chaves, já sozinho, o dinheiro que, veloz, lhe saíra do bolso, convenceu-o, porém, de que era melhor ir de camioneta.

Então e não podia ter levado as testemunhas nas camionetas? “Que camionetas?”. Mas ainda há momentos falara nelas. A pergunta do pastor faz-nos viajar ao passado. Há um ano, quando conversámos, a resposta foi igual. Os autocarros da Autoviação do Tâmega, que tem uma central em Boticas, insistimos. “Ah, esses. Esses temos. Mas as testemunhas não iam neles. Avisaram-me logo. Partem muito cedo de manhã”, diz.

De cajado na mão e olhar nas vacas, que lhe fogem para o terreno do vizinho e lhe puxam um assobio agudo entre os dentes, explica que se fossem de autocarro era preciso pagar a “um empregado” que levasse o gado a pastar de manhã. “Isso também custa dinheiro. E o frio? Nessa altura já era Inverno. E a neve?”.

É comum a preferência pelo táxi entre os habitantes, mas nem todos a compreendem. “Há camionetas suficientes e os horários são bons. São é todos comodistas aqui”, critica Amândio Fernandes, enquanto bebe um café na pastelaria Sabores Regionais, na central de autocarros. Sentado na esplanada com um colega, o motorista de 60 anos aguarda pelas 17h30 para arrancar com o autocarro onde levará 10 pessoas.

“Há mais gente a precisar de hospitais e também para isso têm de ir para Chaves”, defende o motorista António Carlos, de 46 anos, a olhar para as camionetas estacionadas. Algumas pedem reforma.

É nas costas da central que surge o antigo tribunal. Continua igual como se tivesse sido ontem que dezenas de militares, como se se tratasse de uma empresa de mudanças, o tivessem desmobilizado. Há um ano foram os camiões do exército que levaram daqui centenas de processos para Chaves e esventraram a sala de audiências, arrancando bancos e mesas. Questionadas então sobre para onde iriam ser transferidas, as funcionárias, ali colocadas há três décadas, choraram. Agora reina o silêncio. A placa onde se lê “Tribunal” continua pendurada e na porta interior, fechada, um sinal aponta para a sala dos julgamentos.

No edifício, que tem um pátio interior árido, resta a porta do serviço dos Registos e Notariado. “Algumas pessoas continuam a vir cá. Não sabem que o tribunal fechou. Dizemos-lhes para irem para Chaves”, diz uma funcionaria.

“O tribunal fechou?”, pergunta num português com sotaque francês Luís Carlos. Tem 48 anos e está emigrado em França há 44. Só volta a Boticas nas férias. Sentado no café Marialva, em frente à extinta casa da justiça, de camisola da selecção nacional vestida, bebe uma cerveja na esplanada. “Estou a saber agora”, admite surpreendido. Luís Carlos diz “que em França também não há um tribunal em cada vila”, mas fica chocado por saber que as pessoas terão agora de andar "tantos quilómetros".

A dona do café, Gabriela Fernandes, nem quer ouvir falar do novo mapa judiciário que lhe levou quase metade dos clientes. “Houve uma grande quebra no negócio. Vinham cá advogados, juízes e arguidos beber um café e umas águas. Às vezes até almoçavam”. E agora? “Agora, não está a ver?”. Além de Gabriela, do pai e da mãe, só mesmo Luís Carlos na esplanada.

O café ao lado teve melhor dia. Subitamente, um grupo de emigrantes apoderou-se da esplanada. Perdeu clientes desde que o tribunal fechou? “Desculpe, vou ter de sair a correr para o supermercado. Acabaram-se-me as cervejas. Já volto”, diz o dono. Há três cafés alinhados em frente ao antigo tribunal, um número incentivado pelos julgamentos de outrora. No último estabelecimento, Fernanda Portelinha, ali estabelecida há 33 anos, sublinha o lamento. “O fecho do tribunal estragou-nos o negócio”.

Os taxistas da vila estarão melhor. São 16, mas só encontramos um. José de Castro, de 60 anos, admite que agora já leva, pelo menos, um cliente por mês para o Tribunal de Chaves. São 50 euros com espera e se for para Vila Real podem ser 100. “Mas também perdemos os clientes que vinham para Boticas. Eu transportava muitas vezes a procuradora. Tenho esperança de que o tribunal reabra com outro Governo. Senão o que será deste comércio? Vai fechar”, vaticina o dono do carro 08.

É taxista há 20 anos e há 12 era também correspondente de um jornal nacional. “Mandava as notícias pelo telefone. Agora tiram-nos tudo e não há notícias”, lamenta. Mas há. É ele quem nos dá a informação de que na vila se diz que “nos jornais regionais se diz que vai abrir uma Loja do Cidadão no antigo edifício do tribunal”, que é da câmara. Mas da autarquia, que em 2014 se envolveu na organização de várias manifestações contra o fecho, não chegaram esclarecimentos. O presidente da câmara, Fernando Queiroga (PSD), não esteve disponível para confirmar.

Também não encontramos Maria Helena Teixeira que há um ano se sentava na paragem de autocarro junto à Tasquinha da Serração, numa estrada remota de Ferral, em Montalegre, para explicar que era ali que parava o único autocarro de que dispunha para chegar ao Tribunal de Vila Real. Emigrou, dizem-nos.

Lamentava então ter de percorrer quatro horas de viagem em vários autocarros e não saber como chegaria a horas a um julgamento, em Outubro. O primeiro autocarro chegava a Vila Real às 13h, mas os juízes queriam ouvi-la às 9h30. Insistia então que com cem euros mensais da pensão de viuvez e desempregada não tinha dinheiro para a viagem.

Porém, o mesmo plano que levou para Vila Real os julgamentos dos processos-crime mais graves decididos por colectivos de juízes terá criado condições para acabar com uma antiga desavença familiar. O sobrinho Artur Gonçalves, de 24 anos, foi afinal testemunhar e, com o mesmo destino, arranjaram-se as vontades e no carro deixaram de estar desavindos. “Foi comigo. Gastámos 120 euros em gasóleo e portagens das duas vezes que lá fomos”, calcula.

Artur também se resignou. Há um ano garantia que não ia a lado nenhum. Não tinha dinheiro. Então afinal foi? “Que remédio. Se não fosse pagava mais de 100 euros de multa”, explica o também dono da tasquinha de onde há quatro anos um grupo de assaltantes levou tudo. Em Vila Real, apresentou as despesas ao juiz. “Perguntei: 'Então como é com o dinheirinho senhor juiz? Isto fica longe...'”. “Mandou-me falar do assalto e disse que isso não era para ali chamado”. E assim ficaram as suas contas, sem outra opção.

Sem alternativa continuam também os contentores em que parte da Justiça foi metida em Vila Real. O ministério garantia em 2014 que a solução era temporária e serviria apenas para receber parte dos julgamentos dos tribunais do distrito que fecharam e que em Agosto deste ano estaria concluída a recuperação de um edifico da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Ali ficará a instância cível de Vila Real. Mas o iniciou das obras, de quase um milhão de euros, atrasou-se e só estarão afinal concluídas em Dezembro.

Um imenso tapete verde faz as vezes de um jardim até à porta dos contentores que servem de morada à instância cível. Estão rodeados por uma vedação que os separa da mata onde foram colocados.

A tutela prefere chamar-lhes “módulos” e, de facto, o seu interior branco assemelha-se às instalações temporárias de uma urgência hospitalar. “Até não estamos mal. Há quem esteja pior”, reconhece um funcionário. Ao lado, porém, uma colega lamenta o calor que nem o ar condicionado atenua. O sol de Verão coze as chapas que servem de tecto.

Na cabeça da escrivã ecoa também o ruído constante dos passos das testemunhas e réus que por ali passam. O chão sem miolo faz ressonância do barulho de todos os pés.

Em Julho deste ano, o ministério fez um novo contrato de mais de 25 mil euros para continuar a usar os contentores. Talvez então estes funcionários judiciais sigam para o prometido edifício novo de trabalho e deixem de ter razões para o lamento.

Debruçada sobre o balcão, uma escrivã pede anonimato, mas não deixa de criticar a tutela: “Por cá, ainda estamos à espera da apregoada reforma judicial. Foi boa para nos meter em contentores, mas parece não ter grande jeito para nos tirar daqui”.

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