Utopias africanas

Norman Rush criou — pelo menos — uma das melhores personagens literárias femininas das últimas décadas.

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Norman Rush, que passou vários anos em África integrado no Corpo da Paz, está perfeitamente familiarizado com o continente Elsa Rush

É uma voz feminina, insinuante, insistente, rapsódica e resoluta, a que nos chega ao longo da leitura de Acasalamento, o primeiro romance (1991) do americano Norman Rush.

Trata-se de alguém que pensa incessantemente, que analisa, que compara, que classifica, que racionaliza, que questiona, que ironiza e que se lança, em cerca de 600 páginas, naquilo a que John Updike, numa recensão a outro livro de Rush, Mortals (2003), apelidou de “orgia da conversa”, isto é, a abordagem luxuriante e exuberante dos temas de eleição do autor, que incluem a política económica, o desenvolvimento em África, as teorias marxistas, as paixões eróticas e a literatura.

No início de Acasalamento, a narradora, de quem nunca sabemos o nome, deambula por Gaborone, a capital do Botswana. Tem 32 anos, a sua tese final de licenciatura em Antropologia entrou em colapso e o chamado “relógio biológico” torna-a impaciente. A sua frase inicial, “Em África, quer-se sempre mais, parece-me”, determina não uma convicção mas uma opinião, embora ela própria esteja determinada a escapar ao círculo vicioso em que se vê enredado o resto da colónia branca, cuja actividade repetitiva — demasiado sexo, demasiada bebida, demasiado tédio — já não é suficiente para a satisfazer. Os amantes que com ela se cruzam constituem o campo experimental de uma intimidade afectuosa que passa por massagens, flatulências, bronzeado falso, calvície disfarçada, dentaduras postiças, e outros detalhes pouco “românticos”. Por isso, quando toma conhecimento da existência de um homem misterioso que, num lugar remoto do país, construiu uma aldeia ideal, dirigida por mulheres resgatadas de situações difíceis, uma sociedade igualitária, ecologicamente sustentável e revolucionariamente evolutiva, decide encontrá-lo e participar na experiência. Destemidamente, parte sozinha e atravessa o deserto do Kalahari, ao encontro desse bizarro Nelson Denoon, um polímata, um organizador, um engenhoso libertador, um conhecedor profundo de todas as matérias, um idealista que age. Quando finalmente chega a Tsau, confiante e eufórica, prepara-se para ocupar o seu lugar ao lado desse homem que, infalivelmente, parece estar-lhe destinado e que ela está determinada a cortejar. Mas a tarefa não é fácil. É certo e sabido que as utopias, depois de implantadas, são geradoras de tensões e, se tudo correr bem, de um enorme tédio. As sociedades exemplares, que enaltecem a igualdade, a felicidade, o amor, o acasalamento, o entendimento perfeito tendem, com o tempo e com a prática, a apresentar fissuras; ou, ainda, a transformarem-se em distopias, como bem perceberam autores tão remotos como Platão, Thomas More e Aphra Behn, ou tão recentes como H.G. Wells, Arthur C. Clarke, Ursula Le Guinn ou Margaret Atwood, sem excluir o socialista utópico Charles Fourier (referido extensivamente por Roland Barthes), a quem é atribuído o conceito de “feminismo”, pelos idos de 1837, e que desenvolveu a ideia dos falanstérios seguida por Rush através do seu alter ego, Nelson Denoon.

Na realidade, Tsau é um “laboratório” onde o macho alfa (branco) faz sucessivas experiências, mais ou menos bem conseguidas. Há a questão das armas que Nelson repudia mas que são habilmente requisitadas pelos moradores — para defesa contra os leões! Existem tabernas clandestinas e alguns arrufos e desentendimentos. O uso de soutiens e a necessidade de encomendar o respectivo carregamento são pretexto para uma acesa discussão. Os homens — com excepção do “guru” — invejam os habitantes da aldeia mais próxima. Quando, inesperadamente, surge um outro homem branco — um actor shakespeariano inglês —, a competição e despique entre ele e Denoon são dignos de uma luta de galos. Em determinado momento, parece não restar mais nada à narradora a não ser desempenhar o papel “feminino” de apaziguar, distrair, mostrar compreensão — e indisfarçada admiração —, apagando-se cada vez mais e deixando cair, a pouco e pouco, os seus melhores atributos, isto é, a independência, a vivacidade de espírito e a inteligência prática. A mesma mulher que atravessou o deserto sozinha, que enfrentou as maiores privações, que venceu todos os medos vê-se limitada a fazer recados, a desempenhar o papel da “esposa” do chefe e a estar disponível para o sexo. Mas só até um certo ponto, porque Acasalamento é um livro empolgante e a sua protagonista/narradora é uma das melhores personagens femininas das últimas décadas, com todas as suas contradições e falhas compensadas por uma alegria subtil e uma compaixão determinada, sensual e maternal. Neste romance de aventuras e de ideias, ela resplandece, mesmo nas mais caricatas, bizarras ou dúbias situações. Não admira que Rush, um escritor tardio, se tenha tornado um autor de culto nos Estados Unidos, como demonstra a sua escrita complexa que, ironicamente, como que reflecte o acasalamento animal, com as suas tentativas desastradas, os seus exibicionismos, os seus erros, falhas, teimosias, determinações e, finalmente, vitórias.

O facto de toda a acção se desenrolar nos anos 70 do século passado acrescenta um certo exotismo e um contexto histórico excepcional. Rush que, com a mulher Elsa, passou exactamente essa época — de 1978 a 1983 — em África, integrado no Corpo da Paz, está perfeitamente familiarizado com os acontecimentos que determinaram as grandes viragens no continente: luta contra o apartheid na África do Sul, independência de países colonizados, auto-determinação e consolidação das teorias marxistas. No entanto, o autor nunca se deixa empolgar por ideologias e mantém, até ao desfecho, um distanciamento satírico, e uma postura afectuosamente crítica. Enquanto a acção se alonga com a mesma cadência que o tempo em África e os principais protagonistas vão perdendo o seu brilho heróico, Rush nunca se esquece que a sua tarefa mais importante é a de explorar o poder da linguagem. A mulher que tenta sempre aperfeiçoar o seu conhecimento é uma virtuosa do “idioverso”, uma mistura de termos em várias línguas (incluindo as nativas, como o tswana), de referências cruzadas, de piadas privadas, de neologismos, de citações, de estrangeirismos, manipulados e utilizados com avidez. Para ela, a intimidade suprema passa sempre pela linguagem — “ a decadência é quando se começam a perder os nomes das coisas (p. 211) — e a pobreza do vocabulário é uma condenação para qualquer sociedade. Quem não gostaria de lhe seguir os passos, atravessando um deserto e vivendo num lugar quase perfeito, onde todas as experiências são possíveis?

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