A França debate, a França debate-se

À imagem da protagonista de Bando de Raparigas, a França multicolor e múltipla, cansada das suas lutas intestinas, irá levantar a cabeça e voltar a tornar-se um país capaz de proteger as suas minorias? Saberá a França retomar o caminho das Luzes?

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O retrato de adolescentes negras num subúrbio de Paris, confrontadas com o jugo machista que as sufoca DR

Tudo é explosivo, tudo azeda. Os franceses, que sempre foram os campeões da arte da conversação, do confronto de ideias, do combate verbal e do debate político, ainda têm em si os recursos necessários para se ouvirem, debaterem e, quem sabe, entenderem-se?

A realizadora Céline Sciamma faz bem: trata a realidade crua de personagens femininas no contexto tenso da França actual. Coloca em perspectiva a atmosfera tóxica que se instalou no país, pondo as minorias umas contra as contras, e o quotidiano e as aspirações de jovens mulheres enredadas no papel que o seu grupo social lhes quer impor, debatendo-se para tentar fugir da vida que lhes é prometida para se tornarem o que realmente são: mulheres únicas, diversas, livres. Maria-Rapaz, de Sciamma, contava a luta comovente de uma menina com a aparência de um rapazinho que se sentia atraída por outras raparigas, num meio popular. Bando de Raparigas traça, desta vez, o retrato de adolescentes negras num subúrbio de Paris, confrontadas com o jugo machista e violento que reina no seu meio e que as sufoca.

No filme, o que vemos afinal? Um grupo de jovens bonitas, turbulentas como o são todas as adolescentes. Confrontam-se entre elas, procuram o seu lugar no mundo e, por vezes, isso faz faísca. Céline Sciamma mostra a alienação de que são vítimas logo que tentam sair do perímetro que lhes é atribuído. O filme abre com a recusa categórica de um orientador em deixar a heroína tentar a sua sorte numa alínea generalista do liceu. O seu lugar é, perceba-se, numa alínea técnica, erradamente entendida em França como subalterna e reservada às camadas desfavorecidas. É esta primeira rejeição que conduz a protagonista a um caminho caótico.

Em seguida, o filme mostra as múltiplas vexações quotidianas reservadas aos franceses de cor: suspeita de roubo pelas empregadas das lojas, controlos policiais injustificados, etc. Bando de Raparigas mostra-o bem. À falta de integração na sociedade, os jovens franceses originários da imigração só têm como restos de dignidade as noções de honra e de respeito. Infelizmente, estas noções são rapidamente traduzidas como virilidade, o vértice do estatuto social para estes jovens suburbanos – virilidade que se torna uma corrida à violência e, sobretudo, uma rejeição radical de qualquer traço de feminilidade: as nossas jovens heroínas têm de se esconder, alugando quartos de hotel, para poderem ser elas mesmas, longe do terror disseminado pelos pais e irmãos. Alegrias infantis de se maquilhar, de vestir vestidos, de falar de rapazes e de amor, sonhos de raparigas: por fim, dão largas, ao abrigo dos olhares masculinos, a desejos vacilantes de feminilidade acalentados às escondidas. De volta ao seu meio, devem dar mostras de violência (combates de rua entre raparigas), de atitudes próprias dos rapazes (sobrevalorizadas, ao contrário de qualquer traço de feminilidade, associada à prostituição e cúmulo da desonra); escondem ou cortam o cabelo, enfiam um capucho, adoptam comportamentos desordeiros.

O que vale para o combate feminista que devem hoje encetar as jovens dos subúrbios vale também para todas as identidades sexuais e de género, pois sabemos os tormentos pelos quais passam os homossexuais franceses de origem imigrante, apanhados entre o fogo da homofobia violenta, por um lado, e pelo racismo reinante, por outro.
Se se tornou tão complicado para estas francesas serem elas próprias é também porque o religioso, o espírito de clã e a política se sobrepuseram, em França, ao respeito pelas diferenças e ao laicismo. Toda a gente tem opinião sobre o estado da nossa sociedade e essa opinião transforma-se sistematicamente em injunção: já não convivemos uns com os outros, combatemo-nos.
O mínimo acontecimento, mesmo que aparentemente anódino, se por infelicidade tocar uma das três religiões monoteístas, se tiver o mau gosto de ter alguma relação com as ideias feministas ou, pior, se tiver o azar de estar ligado aos direitos dos homossexuais ou for suspeito de propagar as ideias corruptas saídas dos gender studies, será fonte inesgotável de crises, manifestações que degeneram, ódios recozidos descarregados ao longo de programas de televisão.

Cada campo tem agora as suas figuras tutelares, os seus porta-vozes célebres que se precipitam para os microfones que lhes estendem. Eric Zemmour é o mais célebre. Considerado por muitos como reaccionário, cronista e intelectual, apareceu durante muitos anos nos canais de informação, e depois, durante cinco anos, na importante emissão semanal no serviço público On n’est pas couché. Foi esse programa que lhe permitiu instalar as suas ideias na paisagem. O animador desta emissão, aliás, apresentou recentemente as suas desculpas por ter dado antena a Zemmour. Durante cinco anos... Os órgãos de comunicação social ignoram olimpicamente a sua responsabilidade na génese destas polémicas. Mas não foram eles que propulsionaram para diante do público personagens até então obscuras e inaudíveis, dando-lhes audiência massiva, de forma repetida e papagueante? Personagens até então insignificantes que adquiriram, cada um na sua categoria ou minoria, uma importância considerável no debate público, com tanto maior facilidade quanto manipulam os discursos fáceis e as teses mais populistas? Idem quanto aos debates violentos sobre o casamento gay: esses programas televisivos de grande audiência deram voz a autoproclamadas lutadoras pela tradição heterossexuada do casamento que ninguém conhecia e que não possuíam qualquer legitimidade nem associativa, nem científica nem electiva. Souberam tirar proveito desta muito francesa irresponsabilidade editorial dos media para se instalarem continuadamente na paisagem, organizando-se e levantando exércitos de militantes tradicionalistas.
Os intelectuais ditos “reaccionários”, preocupados com o declínio da civilização gaulesa, cristã e europeia, incriminam os “progressistas”: as feministas, os que defendem os direitos humanos, os anti-racistas e, de forma geral, tudo o que, segundo eles, decorrerá do Maio de 68 e da liberalização dos costumes. As mesmas mulheres que encabeçavam as manifestações anti-homossexuais em 2013 pareciam esquecer que, se podem votar, desfilar na rua e ter influência política foi graças ao combate das feministas e dos defensores dos direitos humanos, que conquistaram, há pouco mais de 40 anos, o direito de as mulheres votarem e terem uma conta no banco sem autorização do marido.

Discurso e violência racistas
Podemos situar a libertação espectacular do discurso racista em França num acontecimento relativamente recente: a criação por Nicolas Sarkozy do Ministério da Imigração e da Identidade Nacional, e o seu tonitruante “Debate sobre a Identidade Nacional”, que ocupou a cena política e mediática durante longas e penosas semanas.
Este debate, que deveria redesenhar os contornos da nossa nação, reforçar o sentimento patriótico, recordar o que quer dizer “ser francês”, não terá afinal parido senão uma tremenda e tóxica criatura: a hidra racista. Os tabus, os restos do “viver em conjunto” e de uma certa ideia da moral republicana, que mantinham submersos os discursos racistas, considerados vergonhosos e atrasados, explodiram de repente com uma facilidade assombrosa. O declive do laxismo intelectual é sempre mais fácil de descer que de subir.
A caixa de Pandora assim aberta por alguns aprendizes de feiticeiro ávidos de êxitos eleitorais fáceis nunca mais se fecharia e deixava soprar sobre todos os media e, em seguida, sobre a população os ventos libertadores do “não vejo porque deverei calar-me e baixar os olhos quando é evidente que nós, os bons franceses de gema, somos calcados por esses imigrantes que não respeitam ninguém e têm mais direitos do que nós”.
Tal como depois dos atentados de 11 de Setembro, o pós-Charlie imediato foi difícil de viver para todos os franceses de origem magrebina ou negra. Embora a maioria trabalhe, tente integrar-se ou simplesmente levar uma vida discreta e sem história, décadas de esforços foram aniquilados e os actos islamofóbicos irromperam em França (agressões, profanações de mesquitas, discriminações, etc.).
A débil popularidade do presidente François Hollande e, em geral, a desconfiança dos franceses em relação à sua classe política permitem a todos os perigosos e autoproclamados gurus de um mundo melhor tomar a dianteira e atiçar antagonismos entre os franceses.

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A sociedade patriarcal vs desenvolvimento dos géneros
Se tivéssemos sentido de humor, diríamos que o modelo de sociedade sonhado pelos intelectuais franceses ditos reaccionários já existe e, paradoxalmente, é esse modelo que os aterroriza: uma sociedade dirigida por uma mão firme e que nunca treme, a do pai de família, do homem dotado de toda a sua virilidade guerreira; valores e comportamentos no dia-a-dia que decorrem dos ensinamentos e das tradições seculares da religião; mulheres preferencialmente obedientes, obcecadas pela casa, pela educação da sua prole em conformidade com aqueles princípios, tendo como principal felicidade quotidiana a satisfação do marido (fiel, se possível); a erradicação de qualquer veleidade materialista, de toda a corrupção cúpida e, é claro, dos comportamentos desviantes (homossexualidade, celibato, costumes barrocos); a uniformização dos comportamentos e das aparências. Se tivéssemos sentido de humor, diríamos que este mundo passado e fantasmático de uma sociedade francesa dos anos 50 existe já diante dos nossos olhos: é o dos subúrbios islamizados. Ah, como é feliz essa vida!, deveriam clamar os nossos intelectuais, que julgam agonizante a nossa civilização. Por ora, nenhum deles fez qualquer aproximação e o ideal do subúrbio não parece seduzi-los, afinal. Isto seria se ainda tivéssemos sentido de humor, mas ele já escasseia.

Se as preocupações das classes populares e das classes dominantes não mudaram ao longo de séculos, estas velhas lutas perderam a sua telegenia. Há muito que os partidos de extrema-esquerda não fazem récita nas urnas e o mundo mediático prefere-lhes um novo confronto que esse mesmo mundo contribuiu largamente para criar, um pouco artificialmente: o das minorias viradas umas contra as outras.
Os estúdios de TV e as colunas dos jornais deixaram florir toda uma casta descomplexada de pensadores de teses decadentistas, colocando em causa uma minoria, depois duas e, finalmente, todas elas. Os muçulmanos, depois os árabes, depois os subúrbios, depois todos os árabes e negros, depois os judeus e, evidentemente, os homossexuais. Até a essa minoria dissimulada e castradora, as mulheres (que na realidade é uma maioria, mas enfim, trata-se de um detalhe).

Assim, vimos desenvolver-se nestes últimos anos uma atitude de desafio em relação à cultura muçulmana que alguns editorialistas rapidamente qualificaram como discurso islamofóbico e, digamo-lo, como discurso com uma coloração anti-subúrbios; vimos triunfar o discurso antiprogressista, antifeminista e anti-gay de numerosos intelectuais: Alain Finkielkraut, filósofo (L’Identité Malheureuse, em 2013); Elisabeth Levy, jornalista (revista Causeur e rádio Communauté Juive, RCJ); Eric Zemmour, intelectual (Le Suicide Français, em 2014); Natacha Polony, jornalista (Ce Pays qu’on abat, em 2014); e até o filósofo Michel Onfray, habitualmente referenciado como de esquerda e que reivindica as suas origens populares, entoou esse cântico do declínio, misturando a influência nefasta do Islão e da evolução dos direitos dos homossexuais com a degenerescência da criação artística contemporânea… E, é claro, o escritor Michel Houellebecq (Submissão, em 2015). Poderíamos acrescentar as marcadas derrapagens do escritor Philippe Tesson, as do humorista Dieudonné e as de toda a “reacosfera” (sendo Alain Soral o mais conhecido) – todo este belo mundo dando sucessivas conferências mais ou menos lucrativas pelo país fora e açambarcando os programas ensurdecedores dos canais informativos.
Apesar deste engarrafamento mediático, tais personalidades não cessam de se apresentar como vítimas de censura e de pressões, alimentando assim o sentimento que têm os franceses de serem ignorados e menosprezados pelos políticos e pelo “sistema” (órgãos de comunicação social, maçons, finança). Denunciam as exacções de grupos sociais minoritários e com origem na imigração, esquecendo que, em muitos casos, eles próprios são descendentes de imigrantes. Alguns foram também já condenados pela justiça e dão provas de grande violência, pelo menos verbal. Philippe Tesson, por exemplo, regurgita na rádio France Inter que “aqueles que trazem a merda para França são os muçulmanos” e não vê que o seu próprio filho se vangloria, nos seus livros, de pegar fogo a toalhas de mesa nos restaurantes, entre outras incivilidades dignas de um adolescente mal-educado. A lista de contradições não tem fim.

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Tendo este relaxe geral seduzido as multidões descontentes há longos anos, e matraqueando a fanfarra mediática tão bem sobre o seu grande tambor populista, a situação degenerou. Cedo deixaram de ser os franceses dos quatro costados contra o resto do mundo: cada minoria quis a sua desforra. Voltaram a desfraldar-se velhos estandartes. Muçulmanos virados contra judeus, cristãos contra muçulmanos. Momento de supremo encanto: as três religiões monoteístas puseram-se momentaneamente de acordo e puderam enfim dialogar, mercê de uma bela oportunidade para odiarem em conjunto e em uníssono os homossexuais e o seu satânico casamento gay – um pequeno intervalo de semanas de horror homófobo, para logo retomarem as suas guerras de Alecrim e Manjerona.

Neste marasmo inextricável, Céline Sciamma deixa-nos um raio de esperança ao mostrar a coragem da sua jovem heroína negra, combatente infatigável, que foge de uma prisão mental para se deixar encerrar noutra, abrindo um caminho sinuoso entre os obstáculos levantados pelos seus na estrada da emancipação. Até ao último segundo da história, em que com um olhar incandescente, esgotado, parece hesitar entre a aceitação da sorte que lhe querem impor e continuar a sua luta.
A escolha que fará será vã, votada ao fracasso? Mas trata-se, no filme como na vida, de uma única jovem. Que opções existem para as outras? É claro que alguns indivíduos, dotados de uma força incomum, conseguem escapar, ascender. Mas, paradoxalmente, esses muito raros indivíduos que se emanciparam sabem como isso é impossível.
À imagem da protagonista de Bando de Raparigas, a sociedade francesa multicolor e múltipla, cansada de todas as suas lutas intestinas e de combater contra si mesma, irá enfim levantar de novo a cabeça e voltar a tornar-se um país capaz de proteger as suas minorias, os seus filhos mais fracos, em vez de os banir?
Saberá a França retomar o caminho das Luzes? Good luck.

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