Exército impede centenas de refugiados de entrarem na Macedónia

Líderes europeus insistem em descrever uma crise de imigração, quando a esmagadora maioria dos que estão neste momento às portas do continente fugiram da guerra e de perseguições. São muitos e vão ser cada vez mais.

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Na quinta-feira, a Macedónia declarou o estado de emergência e ordenou que a fronteira fosse selada Yannis Behrakis/Reuters
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Pelo segundo dia consecutivo, o Exército da Macedónia travou a entrada no país de centenas de refugiados, na maioria sírios, dos milhares que tinham passado a noite na terra de ninguém entre o país e a fronteira com a Grécia. Os militares usaram bastões, dispararam gás lacrimogéneo e granadas de atordoamento. No caos, houve desmaios, confrontos, muitos gritos e lágrimas, vários feridos – há imagens de homens com ferimentos nas pernas e com contusões no rosto.

Horas depois, o Ministério do Interior anunciava ter permitido a “entrada de um número limitado de imigrantes ilegais de categorias vulneráveis” – famílias com muitas crianças e mulheres grávidas, segundo os jornalistas no local, numa aparente tentativa para acalmar os restantes.

Na quinta-feira, as autoridades de Skopje declararam o estado de emergência nesta região do Sul do país, ordenando à polícia e aos soldados para selarem a fronteira às 2000 pessoas que todos os dias a estavam a cruzar (o Governo garante que nalguns dias esse número chegou às 3500). Gente que já passou por muito para ali chegar e que tenta desesperadamente entrar num comboio junto à na fronteira e assim atravessar a Macedónia e depois a Sérvia, chegando por fim à Hungria, sinónimo de União Europeia e de livre circulação (Espaço Schengen).

A situação não é nova, mas o ritmo de chegadas acelerou nas últimas semanas e por um motivo muito simples: a Hungria está a construir um muro de quatro metros de altura ao longo dos 175 quilómetros de fronteira que tem com a Sérvia e anunciou que este estará pronto até ao fim do mês, e não mais perto do fim do ano, como previra inicialmente.

“Nesta Europa, os animais estão a dormir em camas e nós dormimos à chuva”, disse a síria Fatima Hamido, depois de ter conseguido atravessar para a Macedónia. “Estava a congelar há quatro dias debaixo de chuva, sem nada para comer”, contou a jovem de 23 anos ao enviado da agência Reuters.

“Pedimos ao Governo da Macedónia para começar a abrir a fronteira e dar prioridade aos mais vulneráveis, às mulheres, crianças e pessoas doentes”, disse no início do dia Alexandra Krause, responsável do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. “Há umas 3000 pessoas aqui [junto à fronteira] e os números estão a aumentar. As pessoas estão exaustas. Choveu durante toda a noite e não há nenhum abrigo.”

Num comunicado, a agência da ONU já se tinha afirmado “particularmente preocupada com os milhares de refugiados e imigrantes, especialmente mulheres e crianças, agora encurraladas no lado grego da fronteira em condições que não param de se deteriorar.

Apesar do comunicado oficial do Governo macedónio se referir aos que foram autorizados a entrar como “imigrantes ilegais”, quem tenta com tanto desespero chegar à União Europeia por esta via são na sua maioria pessoas vindas da Síria, um país onde umas 300 mil pessoas foram mortas desde 2011 e mais de 10 milhões fugiram das suas casas para escapar à guerra.

Segundo o ACNUR, entre as perto de 160 mil pessoas que já chegaram este ano à Grécia, 85% são refugiados e mais de 60% sírios. 2015 foi o ano em que pela primeira vez a Grécia ultrapassou a Itália em número de chegadas – basta olhar para o mapa e perceber de onde vem quem alcança as ilhas gregas. Só em Julho, chegaram aqui 50 mil pessoas vindas da Turquia.

Mais difícil pode ser perceber a origem dos que atravessam o Mediterrâneo depois de terem partido da Líbia, alcançam as ilhas ou a costa da Itália. Mas mesmo nesse caso, as nacionalidades maioritárias não deixam grandes dúvidas sobre o seu estatuto: sírios, afegãos, iraquianos, eritreus, paquistaneses, somalis e nigerianos.

“Vimos da Síria”
“Qualquer país é melhor do que o meu. O meu país é guerra, morte e nenhum futuro”, disse ao diário britânico The Guardian um homem em Gevgelija, a primeira cidade macedónia depois da Grécia. “Ninguém quer saber de nós. Estamos aqui sentados, dormimos aqui, sem comida, sem água, sem nada”, descreveu outro. Sábado, alguns erguiam cartazes: “Ajudem-nos. Vimos da Síria.”

É difícil ser mais clara do que a porta-voz do ACNUR Melissa Fleming: “Estas pessoas são refugiadas em buscas de protecção e não podem ser impedidas de a procurar”.

Ora é precisamente isso que está a acontecer um pouco por toda a Europa, no momento em que o mundo enfrenta a pior crise de refugiados de que há registo – 60 milhões. Os sírios são hoje o maior grupo e a Turquia tornou-se, por isso, no país que mais refugiados acolhe, 1,8 milhões, ultrapassando o Paquistão, onde gerações de afegãos vivem há décadas depois de fugirem de sucessivos conflitos.

Mais impressionante ainda é pensar no Líbano, um país longe de ter as condições dos mais pobres da União, e com uma população de quatro milhões, que conta com pelo menos com 1,2 milhões de refugiados sírios. Ou na Jordânia, país de 6,5 milhões, que abriu um campo de refugiados em 2012 para o ver transformado, em menos de um ano, no segundo maior do mundo – chama-se Zaatari e ali chegaram a viver 150 mil pessoas, antes de Amã, com a colaboração da ONU, abrir um segundo campo.

A Macedónia também se pode queixar e pedir ajuda ao resto da Europa. Como a Grécia (que em cima da sua crise e da austeridade, está a braços com o maior número de refugiados de sempre), a Itália e a Sérvia têm feito. Afinal, a Macedónia é um país de pouco mais de dois milhões onde desde 19 de Junho entraram pelo menos 42 mil pessoas, incluindo 7000 crianças, 600 destas sem serem acompanhadas por nenhum dos pais, escreve a AFP citando números oficiais.

Nunca houve tantos refugiados no mundo, nunca tantos tentaram chegar à Europa. Jean-Chistophe Dumont, especialista em migrações da OCDE, estima que serão mais de um milhão os que chegarão este ano ou até ao início do próximo ao continente. A solidariedade não tem sido a palavra mais ouvida: a Comissão Europeia tentou sem sucesso aprovar um plano em que dividia 40 mil refugiados actualmente na Grécia pelos 28 estados-membros.

Ninguém esteve de acordo com a imposição de quotas (que teriam em conta o PIB, a dimensão, a população…), mas enquanto alguns países já se ofereceram para receber um número realista de requerentes de asilo (como a Alemanha, a Suécia ou até Portugal), outros, como a Eslováquia, não só se manifestam disponíveis para acolher apenas 200 (quando a quota proposta para o país era de 1200) como insiste que só receberá cristãos.

Rotas legais
Não ajuda que os líderes europeus continuem a referir-se a quem chega todos os dias à Europa como imigrantes, mesmo que uma ínfima minorias destes possa de facto inscrever-se nesta categoria – a propósito de Calais, a cidade do Norte da França de onde centenas de pessoas tentam passar todas as noites a caminho do Reino Unido, o Governo britânico insiste que se tratam disso mesmo, imigrantes económicos, que deveriam ser na maioria dos casos repatriados.

Mesmo estes, escreve Kirk Day, director de campo do International Rescue Committee para a ilha grega de Lesbos, “chegam à Europa vulneráveis por outras razões [que não as de terem fugido de uma guerra]; alguns são crianças sozinhas, vítimas de tráfico sexual ou foram torturadas e traumatizadas enquanto atravessam o Saara até alcançarem a costa do Mediterrâneo e, eventualmente, a Europa”.

Num artigo publicado no Guardian, Day nota que muitos avisaram para esta crise. E repete o que tantos responsáveis de tantas ONG têm dito nos últimos meses. “Sem rotas legais como alternativa para chegar a diferentes países europeus, as pessoas que fogem dos conflitos no Médio Oriente e África tomaram o seu destino em mãos, arriscando a vida em busca de um santuário europeu.” Vão continuar a fazê-lo.

“São refugiados, não imigrantes, que chegam aos milhares às costas gregas”, intitula-se o texto de Kirk Day, publicado dias antes de a Al-Jazira ter decidido deixar de chamar imigrantes ou migrantes aos “refugiados do Mediterrâneo”.

“O ‘chapéu’ migrante já não cumpre o seu objectivo para descrever este horror. Evoluiu da sua definição no dicionário para uma ferramenta de desumanização e distanciamento, um termo claramente pejorativo”, explica a televisão pan-árabe num texto publicado no seu site. “Migrante é uma palavra que arranca a voz a pessoas em sofrimento. Substitui-la por refugiados é – na mais pequena forma possível – uma tentativa de lhes devolver alguma voz.”

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