Na praia, sem nada

De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, até Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas.

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Havia duas maneiras de fazer esta viagem: de Caminha a Sagres, ou de Sagres a Caminha. A escolha era totalmente livre, parecia-me. Mas logo me fizeram ver que não era bem assim. Seria estranho avançar do Sul para o Norte. Por alguma razão, o normal seria começar no Minho e terminar no Algarve, disseram-me. Por alguma razão, em Portugal, quando alguém parte, parte para sul.

Não sei se esta lógica se funda nos habituais trajectos de férias, nos vectores dos fluxos migratórios das últimas décadas, ou nas pulsões ancestrais da Reconquista, mas a verdade é que há algo de libertador no acto de rumar a sul.

Quando se progride no terreno, sente-se que cada etapa é uma vitória, uma ascensão a esferas mais limpas e puras. Há um despojamento, um abandono de bagagem, à medida que avançamos para o meridiano, que no entanto é uma miragem que se afasta. O que vem a seguir é sempre experimentado como uma espécie de recompensa.

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A cada cem quilómetros entramos num novo círculo, pleno de características, marcas específicas inconfundíveis, ainda que ilusórias, definidas pela sua posição geográfica relativa e a direcção de onde se provém. É assim que, a partir de Santa Cruz, nos sentimos chegar ao Sul. A paisagem altera-se, faz-se mais árida e plana, a luz torna-se mais clara.

Seguindo pela Estrada Nacional 247, junto às arribas de Ribamar e da Ericeira, parece no entanto ter-se entrado numa zona de transição. É uma área de excepção, diferente, com personalidade de oásis, que liga, ainda que numa estranha atitude de ruptura, os pinhais e as dunas do Norte com as planícies arenosas do Sul. Aqui, ao contrário de quase toda a orla costeira portuguesa, a terra chega verde até ao mar. Há campos agrícolas muito próximos das praias, vegetação densa e fresca cobre o dorso das falésias, que surgem em cortes abruptos, sem transições dunares, ou de plantas de zonas secas, como se o mar aqui tivesse chegado há pouco tempo. Faz lembrar, mais do que outras zonas do litoral português, as Rias Altas da Galiza, ou os tons contrastados da húmida costa cantábrica.

É nestes caminhos traçados em terrenos altos, em que, de braços abertos, quase podemos tocar os campos de milho e a água, que nos sentimos seres de vários mundos, capazes de compreender o continente e o mar, a Europa e o Atlântico, e os seus nexos subtis e inquebráveis.

A serra de Sintra cria e abriga este mundo de neblinas, e define-o como um pequeno “Norte”, por oposição ao “Sul” da Linha do Estoril. O cabo da Roca marca a divisão. A praia da Adraga, a Praia Grande e a Praia das Maçãs, tal como a Ericeira e todas as estâncias a norte da serra, são húmidas e ventosas, e inauguram até os seus dias de Verão com densos nevoeiros.

Se obedecermos ao percurso ribeirinho, saindo da EN246 para as praias de Sintra, e daí tomar a estrada da montanha que vai ao cabo da Roca, desce pelas aldeias da Azóia e da Atalaia até ao Guincho, e daí até Cascais, pode quase sempre observar-se a mudança climática a olho nu. Descendo pela Malveira da Serra, é frequente acontecer sairmos de uma nuvem, como quem aterra numa superfície com luz própria. Depois, se olharmos para trás, lá está a aura de fumo sobre a serra, a nuvem endémica e espessa que nos faz acelerar convictamente para sul.

A marginal que liga Cascais a Lisboa é um universo à parte, com os seus superlotados bares de praia, os seus hotéis de luxo e apartamentos de milhões de euros. Também isto contribui para que olhemos a zona como um outro “Norte”, em relação ao “Sul” que é a Costa de Caparica, o Meco e Sesimbra.

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Porto de Sines

Nestes raciocínios subjectivos, a serra da Arrábida funciona como a némesis da serra de Sintra. Se esta invoca atmosferas góticas do Norte da Europa, aquela é toda Mediterrâneo, Grécia e Palestina.

O percurso a seguir é pela Ponte 25 de Abril, chegando à Costa de Caparica por Cacilhas e Cova do Vapor (ou, em abreviatura preguiçosa, pela auto-estrada directa para a Caparica).

Se exceptuarmos o interregno constituído pelo eixo Sintra-Cascais, todas estas praias a sul da Nazaré, designadamente Santa Cruz, Ericeira e Caparica, projectam uma imagem de desleixo, caos urbanístico, falta de estruturas de desporto e veraneio, incúria das autoridades municipais, má qualidade das construções. Que diferença entre estas praias da zona de Lisboa e as de Esposende, Vila do Conde, Francelos, Miramar, Espinho ou Figueira da Foz. Neste capítulo, descer a EN246 depois da Estrada Atlântica da Costa de Lavos significa passar da civilização para a barbárie, e a libertação, claramente, consiste em rumar a norte.

A estrada que une a Costa de Caparica à Fonte da Telha dá acesso a praias incríveis, de areais imensos e dunas, ligados sem interrupção. É uma zona ambiental protegida, pelo que não há construção para além dos bares de praia.

Mas existe o sinistro parque de Campismo da Caparica, pertencente ao Clube de Campismo de Almada, onde milhares de pessoas vivem em “alvéolos” pegados uns aos outros como num campo de refugiados, e há todo o bairro clandestino da Fonte da Telha.

Aqui, em plena zona protegida das Arribas da Caparica, há centenas de casas e barracas, terrenos com caravanas, construções em tijolo e chapa, e até mansões com piscina. Os terrenos ocupados e apropriados são depois vendidos, trocados, aumentados. Há quem vede um espaço, o atafulhe de roulotes e tendas e o arrende à semana, ao mês ou ao ano, a turistas no Verão, ou a novos moradores, expulsos de várias regiões pelo desemprego e a crise.

Desde uma série de demolições ocorridas em 1982, as autoridades resolveram deixar em paz os habitantes do bairro da Fonte da Telha, por não ter solução para eles. António Amorim, presidente da Associação de Moradores da Fonte da Telha, e uma espécie de autoridade suprema e informal do bairro, disse-me que está prevista para 2017 uma nova acção na urbanização clandestina, decorrente da aprovação no novo Plano de Pormenor para a zona. Até lá, só pede que asfaltem a única estrada de acesso, para que a “povoação” não viva permanentemente envolvida em poeira.

“Aqui tudo é ilegal”, diz ele. “Vivemos com uma espada em cima da cabeça. Nós não mandamos nada. Um ministro pode vir aqui e dar ordem para demolir tudo no dia seguinte. Mas isso não impede as pessoas de tentarem melhorar as suas casas e as suas condições de vida. Por isso fazem obras, prolongam os seus alojamentos, para receberem novos familiares e amigos, que precisam. Mas não são pessoas de fora. São apenas as velhas famílias de pescadores desta terra, e os seus filhos e famílias, que vão crescendo.”

Há anos, esta Comissão de Moradores teve alguma força, contactou as autoridades, informou os media. Agora está em decadência. “Os jovens não querem saber de nada, não se reúnem connosco, para resolver os problemas”, diz Amorim, que tem 82 anos e é dono do enorme restaurante Amorim, que começou por ser uma barraca. “Já não conseguiremos resolver nada. Isto não tem solução, por causa das autoridades da zona protegida. A gente desse gabinete não tem nenhuma compreensão pelo que se passa aqui. Querem saber da natureza, mas não querem saber das pessoas. Por isso isto não vai ter nenhuma solução.”

Há anos, um bem-sucedido empreendedor do bairro começou a construir um gigantesco palacete na encosta, decorado com uma colossal escultura de uma ave (talvez uma gaivota, ou uma águia) saindo da parede central. Até a Câmara de Almada, que nunca faz nada quanto às construções que nascem todos os dias, parece ter achado que aquilo era demasiado, e embargou a obra.

Resta agora uma ruína em tijolo e cimento, com o enorme o pássaro de asas abertas, em frente do mar. Em poucos lugares do país é tão evidente o contraste entre o esplendor da natureza e a miséria humana.

Só muito mais à frente se recupera a harmonia. Só após o estuário do Sado, depois da travessia no ferry-boat para Tróia, seguindo ao longo da costa da Comporta, voltamos a ter ordem e beleza, talvez porque as barreiras naturais reservaram estas regiões para os ricos, ou os muito pobres. A pressão urbana ficou detida nas escarpas da Arrábida, que deixaram para trás a luta pela sobrevivência, a lei da selva, o desespero da concorrência pelos bens escassos, e abrem o caminho para, agora sim, o verdadeiro Sul.

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Venda na aldeia de Porto Covo

Mais uma ilusão produzida pela viagem, agora formada por solidão, planície, casas caiadas, sombras definidas e mar turquesa. O Sul. Uma doçura que só tem equivalente nas praias a norte de Viana do Castelo. Mas aqui há mais distância à nossa frente. Teremos a imensidão da costa alentejana e vicentina, podemos deslizar em paz pelo Sul, o grande Sul português.

É um milagre que tudo isto tenha sobrevivido. Onde estão os hotéis hediondos, os prédios encavalitados, as rotundas e os centros comerciais? Nada. Há apenas o necessário, as estruturas que permitem viajar, comer, dormir, habitar. Ou talvez isto seja um exagero, apenas mais uma ilusão do viajante. A sensação, que a moto oferece, de planar sobre uma terra primordial, limpa e cristalina. Tudo isto nos reconcilia com o que ficou para trás. Recobramos a força, aceitamos, com uma espécie de indulgência criativa, o país a que pertencemos, porque existe esta beleza preservada. Nada está perdido, enquanto for possível conduzir uma moto pela estrada a sul de Sines, por São Tormes, ondulando pelas curvas até Porto Covo.

Aí, na aldeia que se popularizou e cresceu por efeito de uma canção, encontramos o equilíbrio urbanístico próprio das povoações alentejanas, mesmo quando se trata de construções novas e modernas.

Quem, vindo de todas as regiões, escolhe Porto Covo para passar férias, parece animado por uma filosofia, provavelmente extraída do poema de Carlos T. “Venho para cá todos os anos”, diz Carlos Pereira, 48 anos, professor do Porto.

Carlos, a mulher e a filha vão muitas vezes para a Praia do Salto, uma das várias entre as falésias a norte da povoação. Situa-se entre as praias do Cerro da Águia e Cerca Nova, tem acesso por uma longa escadaria de madeira, e é uma das sete praias oficialmente nudistas em Portugal. Destas, não há nenhuma a norte do Meco (junto a Sesimbra) e da Bela Vista (ao lado da Fonte da Telha). A maioria das praias nudistas, ou naturistas, situa-se na costa alentejana e algarvia. Poucos quilómetros a sul da Praia do Salto, encontramos a das Adegas, contígua à praia de Odeceixe.

Ao contrário de todas as outras, que são frequentadas maioritariamente por estrangeiros, jovens “alternativos” e casais acima dos 60 anos, a do Salto é essencialmente uma praia familiar. As pessoas provêm de várias regiões do país, mas conhecem-se, na sua maioria, porque vêm para cá todos os anos, e têm a consciência de pertencerem a um determinado grupo e a um movimento.

“Para nós, o naturismo é uma filosofia de vida”, diz Carlota, uma designer de 36 anos que vive na zona de Lisboa. Veio com o marido e os dois filhos, ficará alguns dias, antes de partirem para as outras praias nudistas, ao longo da costa, rumo a sul, até à da ilha de Tavira. “Além da sensação de liberdade, da saúde e bem-estar físico que proporciona, acreditamos que o naturismo ajuda a transformar as relações sociais. Há um convívio diferente entre as pessoas. Ao colocar os preconceitos de lado, elas concentram-se no que é mais verdadeiro e importante. O naturismo é uma grande arma contra a hipocrisia.”

A meio da tarde, a praia está cheia. Não é um areal grande, pelo que não há a dispersão que vemos no Meco, em Odeceixe ou em Tavira. Aqui as pessoas estão próximas e, como se conhecem, falam umas com as outras, dentro de cada grupo, mas também entre grupos.

Uma família no centro da praia inclui pais, filhos, avós e uns primos, instalados noutro canto, perto das rochas. As crianças de uma família brincam com as de outra. Os adolescentes de dois grupos juntam-se para jogar cartas, sentados em roda. Todos nus, é claro, embora ninguém repare nisso.

Grupos de homens, geralmente acima dos 50 anos, juntam-se à beira da água a conversar. Estão muito bronzeados, integralmente, e não parecem sentir qualquer constrangimento com as particularidades anatómicas de cada um.

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A praia das Adegas

Há quem se desloque de um grupo para ir meter conversa com outro. Quem se sente junto de outra família, para partilhar o lanche, mostrar uma imagem no telemóvel, ou emprestar um livro, ou uma revista. Os pais brincam com os filhos, crianças ou adolescentes, sem evitar o contacto físico, sem embaraço ou vergonha.

Por vezes, ao ver os grupos humanos deitados na areia, com os seus corpos quase sempre imperfeitos movendo-se com naturalidade, vem à cabeça de um repórter ainda muito imbuído de preconceitos da sociedade do pudor a imagem de grupos de animais relaxando à beira da água.

Passando a óbvia incorrecção política da metáfora, ela não deixa de sugerir a questão: o nudismo desumaniza-nos?

Mark, um holandês de 55 anos que acaba de sair da água com a mulher e a filha de 19 anos, responde à pergunta. “O naturismo devolve-nos a humanidade. Olhe à volta, repare bem. Veja como todo o comportamento é tão humano.”

Mark é um intelectual e um activista. O nudismo é para ele um acto político. “As pessoas vestem-se, na nossa sociedade, para marcar relações de poder e dominação. A origem dos trajes é a necessidade de esconder o corpo da mulher, para manter a posse sobre ele, por parte do homem. Tratava-se de guardar e proteger a propriedade, impedindo a usurpação, por parte de outros machos, e a liberdade da mulher, enquanto ser humano autónomo. E com a simbologia das roupas geriu-se, ao longo da História, todo um tráfico dos corpos e das individualidades.”

Na sequência destas considerações, despirmo-nos é um acto simbólico de revolta. “Note como as pessoas, sem roupa, passam a agir com muito mais autenticidade. Não mostram arrogância e prepotência umas com as outras. Não ostentam poder, mas também não têm medo. É como baixar as armas. As pessoas ficam sem nada, excepto a sua humanidade. É só isso que trazem para aqui, mais nada. E com isso ficam mais ricas.”

Na presença de tal teórico, e vendo como a filha não parece tão descontraída como os pais atravessando nua a praia, por entre os banhistas, aproveito para lhe colocar uma questão que me confunde.

Uma vez, numa reportagem com o INEM, vi trazer para a ambulância uma mulher de mais de 80 anos, que tinha perdido os sentidos em casa, devido a uma crise cardiorrespiratória. Quando a mulher foi colocada na maca pelos técnicos de emergência médica, a sua camisa de dormir levantou-se até ao cimo das pernas, deixando as cuecas à vista. Foi nesse momento que a mão daquela mulher, que estava inconsciente, surgiu de repente, das profundezas da sua quase-morte, a puxar freneticamente a saia para baixo.

Será possível que o pudor seja uma coisa natural? Mark não se comoveu com a história. “Essa mulher foi condicionada durante toda a vida. Convenceram-na de que perderia a sua dignidade, se o seu corpo fosse visto por alguém.”

É possível ser-se condicionado até à morte? “Sim. Nem a morte nos liberta. É enquanto estamos vivos, enquanto temos forças, que temos de quebrar as algemas.”

Carmen e Maria, espanholas na casa dos 30 anos, procuram sempre praias nudistas, quando fazem férias juntas. Não fornecem explicações políticas, como Mark, mas a sua lógica parece confirmar a dele. “Como somos lésbicas, aqui sentimo-nos muito mais à vontade. Há sempre muitos casais gay nas praias naturistas, por essa razão. Aqui ninguém nos julga, nem nos sentimos diferentes ou estranhas.”

Tudo se passa como se, eliminadas as roupagens, fossem também neutralizadas as regras e os códigos de comportamento convencionais. Alguém que não está interessando em jogar com essas regras sente-se aqui mais livre. “Aqui somos olhadas como pessoas normais”, diz Maria. “Como pessoas.”

De vez em quando, no cimo das falésias, surgem os inevitáveis mirones, especando em transe pasmado, ou não resistindo a fotografar, com os telemóveis. Neste caso, alguém dá um alerta, e toda a praia desata a gritar e a assobiar. “Não, não! Estás a fotografar o quê? Vai-te embora!” As crianças, em especial, parecem adorar estes momentos. Gritam com orgulho, muito compenetradas do seu papel, as frases que já ouviram gritar, várias vezes por dia. “Vem cá abaixo tirar uma selfie!”

São as únicas alturas em que a praia nudista funciona como tribo. Unidos contra um inimigo comum. Chegam a parecer um grupo fechado e preconceituoso, no zelo exagerado com que defendem a sua liberdade. Quando o mirone foge, envergonhado, riem e conversam uns com os outros sobre o caso, com expressões de indignação.

“Se toda a gente fizesse nudismo de vez em quando, o país estaria bem melhor”, diz Carlota. “Se as pessoas voltassem à estaca zero, se se despojassem de tudo, voltassem à sua essência, seria mais fácil pensar, resolver os problemas.”

Carmen mantém as pernas entrelaçadas nas de Maria enquanto diz: “O importante não é tirar a roupa. O importante é sermos capazes de nos aproximar uns dos outros sem nada nas mãos, nada no corpo. Sermos nós, sem mais nada.” Carlos, que se aproximou delas, acrescenta: “E ser capaz de vaguear sem horas marcadas pela costa alentejana.”

Só depois do pôr do Sol é que os nudistas abandonam a praia. Um a um, sobem a estreita escada de tábuas. Só um rapaz muito magro, de cabelo comprido, fica no areal. Tem uma pequena tenda, está ali a viver. Aquece uma chávena de chá numa pequena fogueira junto aos rochedos e acena-me, quando por fim também eu começo a subir a escada. Opto por não o entrevistar. Está tudo dito no seu silêncio. É tempo de amarrar a mochila à moto e rumar a sul.     

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Ao fundo a ilha do Pessegueiro

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