A nova ordem das redes

Os equívocos e percalços originados pelos cartazes da campanha do Partido Socialista (e, em menor grau, da coligação PSD/CDS) oferecem matéria abundante para os estudos de iconologia política, uma área que os nossos “politólogos” têm deixado quase abandonada. Quando o destino do partido, como forma organizada do conflito social, se confundia com o próprio destino da política – da política moderna –, a propaganda partidária fazia-se através de uma afirmação estética e poética, por mais kitsch e estereotipada que fosse, geralmente, tal produção. A memória iconológica de um estetização da política permaneceu até tempos recentes. Ainda nos lembramos de Guterres, em campanha, a entrar em palco, nos comícios, ao som da música “épica” de Vangelis. Mas não é por acaso que foi o Partido Socialista a revelar-se agora mais vulnerável: tendo abraçado – com pudor, mas sem grande resistência - a última forma da revolução conservadora, iniciada na última década do século passado, teve que deitar fora todos os vestígios de uma estética antiga, sem saber muito bem em que território estético-ideológico se situar. O resultado, como vimos, foi um cartaz que, numa perspectiva iconológica, recupera os traços completamente afastados de todo o imaginário político e próximos do simbolismo religioso mais fatigado. E, a seguir, o PS procedeu a uma “cenarização” fraudulenta para alimentar a grande ordem narrativa: caras de anónimos, a presidir à formatação dos desejos e à propagação de emoções. Trata-se, nos dois casos, de uma fuga a toda a iconologia política. Mas é necessário dizer que todos os partidos e movimentos, não apenas o PS, estão hoje expostos à dimensão anacrónica e quase sempre patética da propaganda política através de cartazes de rua. E a prova está nesse exercício de paródia e carnavalização a que eles estão a ser submetidos nas chamadas “redes sociais” (muito especialmente no facebook). Os cartazes são de um tempo anterior às redes e apresentam-se com uma dimensão ridícula nesta nova ordem cibernética, exibem uma debilidade flagrante perante a nova configuração do espaço público e as formas tecnológicas e digitais de circulação da informação. Ao olharmos hoje para um cartaz, o que vemos irreversivelmente é um cartoon. Os políticos tornaram-se assim personagens de cartoon, ainda que essa condição não os impeça de ganhar eleições. A paródia é a nova política como obra de arte total e os cartazes não são mais do que um vestígio conspícuo da vasta operação paródica. Os partidos que se alternam no poder contratam profissionais da comunicação, esquecendo que os seus belos artefactos vão ser atacados por amadores da comunicação, por um vasto exército de hackers, que é a figura que adquiriu o “povo da rede”. A comunidade de hackers contra os engenheiros dos programas políticos: eis a feição da nova guerra civil em curso. A política está hoje confrontada com novas formas de entropia, já não a entropia como lei natural do sistema, mas uma entropia infernal. As formas tradicionais de crítica, como aquelas que os jornais praticam, começam a parecer inócuas quando comparadas com os efeitos da nova ordem cibernética. Por isso, o jornalismo mais não pode fazer do que recorrer à citação: “A personagem X e o acontecimento Y estão a causar um enorme furor nas redes sociais”. E esta maneira de citar é quase uma confissão de que, tal como os políticos, os jornais não sabem ainda muito bem qual o lugar que ocupam nesta nova ordem. Há momentos da história, dizia Gramsci, em que o antigo já está caduco, mas em que o novo ainda não emergiu com clareza.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários