Os ratos-pretos das Berlengas e as lontras das ilhas Aleutas

Ninguém pode dizer ao certo o que acontecerá nas Berlengas se exterminarem os ratos-pretos e os coelhos, mas uma coisa é certa: coisa boa não será.

Para além de serem ilhas, poucas semelhanças haverá entre as Berlengas e as Aleutas. Porque todas as ilhas são diferentes, porque não existem duas ilhas iguais no mundo.

As Berlengas localizam-se no Atlântico Norte junto à costa portuguesa e fazem parte da plataforma continental americana. Aqui ficaram esquecidas quando se iniciou a separação dos dois continentes há mais de 150 milhões de anos. As Aleutas são o prolongamento do Alasca para Sudoeste e a fronteira entre o Mar de Bering e o Oceano Pacífico. Formaram-se na colisão entre duas placas oceânicas.

Nos mares circundantes das Aleutas havia lontras. Em pouco tempo a população de lontras diminuiu em cerca de 90%. Os cientistas descobriram que estes pequenos mamíferos marinhos estavam a ser comidos pelas orcas. Estranho. Normalmente as orcas não comem lontras. Preferem focas, bem mais nutritivas e fáceis de caçar.

Se as orcas passaram a comer lontras terá sido porque as focas desapareceram daquelas paragens. Porquê? Bom, parece que as focas deixaram de ter peixe para se alimentarem.

O que aconteceu aos peixes? Talvez os pescadores tenham pescado de mais. Ou talvez tenham caçado demasiadas baleias que se alimentam de microplâncton. Sem baleias, o microplâncton aumentou e as populações de pescada que se alimentam dele também. Essas pescadas, em competição com os peixes de que se alimentavam as focas, exterminaram-nos.

E as lontras? As lontras comem ouriços-do-mar e os ouriços-do-mar alimentam-se de algas. Comendo os ouriços-do-mar, as lontras geriam as ricas florestas submarinas do mar das Aleutas. Sem lontras para controlar os ouriços, as populações destes cresceram muito, dando início a um processo acelerado de “desflorestação” e, depois, desertificação.

E, no mar das Aleutas, como aqui nos nossos campos, as florestas são a base de toda a vida. Delas dependia a maior parte dos peixes que desapareceram. Até a águia-de-cabeça-branca, símbolo da América e que se alimenta de peixe, entrou em extinção nas ilhas Aleutas que eram um dos seus principais redutos.

Nas Berlengas existem ratos-pretos. Não são aquelas ratazanas que  andam pelas nossas cidades. São uns ratitos pretos de pelo negro e sedoso que devem andar por lá há umas largas centenas de anos. Não sabemos muito sobre eles. Mas sabemos que não são muitos nem poucos. São os que são. Também existem lá coelhos, talvez há uns milhões de anos, também nem muitos nem poucos. E pardelas, que são umas aves marinhas lindíssimas, e corvos-marinhos, e lagartixas únicas no mundo, e talvez ainda haja alguns lagartos, e uns passaritos engraçados chamados rabiruivos, e carochas de várias formas e cores, e flores, enfim, vida, muita vida. E gaivotas, talvez gaivotas a mais.

Agora, um grupo de pessoas muito inteligentes faustosamente subsidiadas por outro grupo de pessoas tão inteligentes como elas lá em Bruxelas, decidiram que era altura de exterminar ratos-pretos e coelhos das Berlengas.

Estas pessoas inteligentes acham que são deuses e que podem manipular a natureza. Assim como aquele aprendiz de feiticeiro do poema de Goethe na peça musical de Paul Dukas imortalizada pelo rato Mickey na Fantasia de Walt Disney.

Para estes seres tão inteligentes basta a posse de um pouco de conhecimento para terem a sensação ilusória de domínio do aprendiz de feiticeiro, no qual arrogância e audácia substituíram humildade e prudência.

O que aconteceu nas ilhas Aleutas foi aquilo a que os biólogos chamam uma reacção em cadeia, um efeito de cascata.

O que é que os ratos-pretos e os coelhos das Berlengas têm a ver com as lontras das ilhas Aleutas? Talvez nada! Talvez tudo! Ninguém pode dizer ao certo o que acontecerá nas Berlengas se exterminarem os ratos-pretos e os coelhos, mas uma coisa é certa: coisa boa não será. É que a natureza é como um frágil castelo de cartas. Experimentem tirar uma das cartas que suportam o castelo e vejam o que acontece.

A propósito, há tantas histórias para contar. Sabem que em Chernobil havia tordos? Aos milhares!

Biólogo do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa e Centro de Estudos do Ambiente e do Mar

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