A tradição pujante dos Retimbrar

São um dos segredos mais bem guardados da música portuguesa: um grupo que começou por dar concertos de rua, centrados em percussões tradicionais, e que se aproximou das canções. O disco sai em Fevereiro, mas no Domingo já terão oportunidade de ouvir um cheirinho.

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Domingo vai haver “uma grande arrufada para chamar as pessoas para o palco”. Como quem diz: a festa vai começar. E preparem-se, porque se correr como é habitual, vai haver mesmo festa DR

Não é uma manifestação, não é um grupo – é um movimento, que é como os Retimbrar se definem. Quaisquer dúvidas sobe esta ou outras definições podem ser tiradas no Domingo, no Festival Bons Sons, onde o grupo, perdão, o movimento irá atuar – será o primeiro grande concerto de uma banda, perdão, movimento que tem tudo para ser grande. E dizemos isto porque já ouvimos o disco de estreia, que só sai em Fevereiro – e do qual eles darão um cheirinho no concerto.

Como podem ter adivinhado, os Retimbrar são tudo menos um projeto comum. Quem por acaso ouvir o disco poderá defini-los como uma banda que repesca a música tradicional portuguesa e a traz para o século XXI. Há instrumentos antigos, percussões de que nem os muito velhinhos se lembram, mas também melodias que soam aos dias de hoje. Atentem no que vos dizemos: o disco vai deixar muita gente com água na boca. E com a boca aberta. E vai passar de boca em boca. Incrível o número de más piadas que se podem fazer com a palavra “boca”.

Mudando de assunto: é possível que no domingo o concerto oscile canções e percussão. Porque no início era a percussão. Ora aí está uma bela e verdadeira frase: no início era a percussão. Foi exactamente por aí que os Retimbrar começaram, como uma oficina de percussão tradicional portuguesa. Ironicamente, o grupo foi fundado em 2008 por um percussionista uruguaio – chama-se Pancho e está radicado em Portugal há muitos anos.

Epifanias
“Vim a portugal pela primeira vez há 22 anos”, conta, “para trabalhar num espectáculo de tango e cha-cha-cha no Casino da Póvoa”. Pancho, que é um bacano, ficou seis meses, conheceu “muitos músicos”, entre eles os Clã, que tiveram a simpatia de oconvidarem a juntar-se a eles para “gravar o primeiro disco” e depois “a ir com eles em digressão”. Durante uns anos Pancho andou entre Portugal e o Uruguai. Lá pelo ano 2000 começou a ficar mais em Portugal. Hoje toca com os Expensive Soul (há 10 anos), dá aulas de instrumentos tradicionais portugueses em Santa Maria da Feira e toca e grava com vários músicos. Também dá aulas particulares de percussão, caso estejam interessados.

A ideia dos Retimbrar não surgiu numa epifania mas sim em duas: a primeira envolve um mapa de Portugal, a segunda uma arruada no Uruguai.

Vamos à primeira: “Um dia um amigo mostrou-me um mapa de Portugal que tinha todos os instrumentos tradicionais portugueses. Fiquei intrigado – conhecia gente da Brigada Vitor Jara, de outras bandas de música tradicional portuguesa, conhecia muitos músicos portugueses e havia ali instrumentos que eu nunca tinha visto”.

Segunda epifania: um dia, no Uruguai pôs-se a observar “os grupos que tocavam música popular na rua”. E notou que não havia isso em Portugal. Havia concertos de música popular, festas da aldeia, mas não havia músicos profissionais a fazer música tradicional na rua. Pelo que juntou as duas epifanias e escreveu um projecto que apresentou à junta de freguesia de Espinho. A reunião não podia ter corrido melhor: “Uma hora depois já estávamos a combinar que instrumentos tínhamos de comprar”.

A ideia por trás do movimento Retimbrar era simultaneamente simples e complexa: “Recuperar todos os instrumentos alguma vez usados na música tradicional portuguesa” e “desenvolver e refinar a música popular portuguesa – as canções, os ritmos, as harmonias”. Daí o nome Retimbrar: retimbrar é mudar o timbre, “é refinar”. A palavra é uma criação de Valdinho, amigo de Pancho, que usou esse termo para se referir à mudança de cordas uma guitarra – Pancho apaixonou-se pela palavra e estava encontrado o nome do “movimento de desenvolvimento e adaptação de instrumentos portugueses”.

Digamos que este ano, com apoio da Junta de Freguesia de Espinho, em que os Retimbrar eram “uns 15 membros, todos de Espinho” e se dedicavam antes de mais à percussão, pode ser apelidado de Retimbrar 1.0. Porque entretanto Pancho encontrou Serginho – autor de uma boa parte das canções que surgem no disco – e surgiram os Retimbrar 2.0.

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“Eu e o Serginho fizemos um curso de formação de animadores musicais em 2009 na Casa da Música”, recorda Pancho. “Tínhamos ao nosso dispor um monte de instrumentos – de salsa, de samba, de tudo. Mas instrumentos portugueses só havia um bombo num canto. Fui ter com o director do serviço educativo e fiz ver que não havia instrumentos de percussão portuguesa, o que despetou a curiosidade dele”.

Ora, Pancho tinha “uma missão, que era reunir todos os instrumentos que estavam naquele mapa – e não eram apenas instrumentos de percussão”. Pelo que “precisava de uma pessoa que conhecesse bem a música popular portuguesa”. E arranjou “a melhor pessoa, o Serginho”.

Com Serginho a seu lado Pancho levou ao diretor do serviço educativo da Casa da Música “um projeto para comprar instrumentos portugueses e desenvolvê-los”. O projeto foi aceite e Serginho desenvolveu-o. Fizeram adufes e caixas e timbalões com diferentes afinações. Os Retimbrar deixavam de ser 15 músicos de Espinho e passavam a ser uma espécie de oficina de música popular portuguesa. “A dada altura chegámos a ser 32”, conta Serginho.

Foi nessa altura que entrou o percussionista Francisco Baião. “Eu considero essa estadia na Casa da Música, em Janeiro de 2010 como o nascimento oficial dos Retimbrar”, diz o percussionista. Ou: o nascimento dos (por assim dizer) Retimbrar 2.0. “Para a maior parte de nós foi uma experiência única – estávamos completamente a leste da existência da maior parte destes instrumentos”, explica, passando a exemplificar: “Aprendi a tocar trécula; aprendia a tocar o brinquinho da Madeira, um instrumento muito castiço que faz um barulho com umas caricas; aprendi a tocar ginebre; tanta coisa”.

Os Retimbrar 2.0 eram, portanto, uma oficina de experimentação de instrumentos tradicionais, composta por três dezenas de músicos e voltada para as actuações de rua – estiveram em Guimarães Capital da Cultura, fizeram animação de rua em Viseu, onde também deram workshops, tal como em Braga ou em Aveiro. Foram ganhando nome pelas actuações ao vivo, uma coisa portentosa, tanta era a percussão.

Depois, devagarinho, começaram a mudar: “Ao fim de um ano e meio havia bandolim, viola, cavaquinho e começámos a experimentar fazer canções com eles”, conta Serginho, que tenta situar o momento: “Deve ter sido em Janeiro de 2011”. Francisco lembra-se da mudança: “Foi uma coisa natural: começámos a perceber que havia gente no grupo que além de tocar perucssão também tocava cavaquinho ou outros instrumentos de cordas, gente que cantava, e começámos a improvisar nos ensaios com os instrumentos que tínhamos. Há nisto um certo cariz de banda de garagem, nada de muito pensado”.

Batucada e canções
Bem, houve um lado pensado, um lado de pesquisa. “No início”, explica Serginho, “fomos mesmo estudar os ritmos dos tambores, os Zés Pereiras, certas melodias. Mas nunca foi uma busca muito científica. Fomos à net, conhecíamos algum reportório, e quando não conhecíamos reportório conhecíamos quem tocasse música tradicional e o conhecia”. E foi assim que cantiga a cantiga se chegou aos (por assim dizer) Retimbrar 3.0 que já não são apenas um brutal grupo de percussão de rua mas também isso e um grupo que faz grandes canções baseadas na música tradicional portuguesa.

E não é um pouco esquizofrénico ser ao mesmo tempo uma banda de batucada na rua e uma banda de canções?

“O primeiro concerto de palco em que tivemos instrumentos melódicos e vozes”, recorda Serginho, “foi em Maio de 2011, uma coisa um bocado forçada, para ver como funcionava. Tínhamos um ou dois originais e depois tocámos versões do Zeca e de um brasileiro chamado Carlos Mota, com quem tocámos, e adaptámos os temas dele ao nosso grupo”. Não resultou mal e “depois disso apareceram mais dois ou três originais e mais umas versões” e quando deram por ela tinham material para um disco.

À medida que foram surgindo canções foram saindo pessoas – os (chamemos-lhes assim) Retimbrar 3.0 são agora 12. “Não houve zangas”, explica Pancho. “O que se passa é que as pessoas têm de ganhar a vida, foram dar aulas, juntaram-se a outros grupos. E não é fácil manter um grupo com três dezenas de pessoas, fazer este som. Não é fácil sequer marcar um ensaio”. Nesse sentido os Retimbrar são uma espécie de plataforma mutante: há gente que compôs para o disco, já não está na banda mas volta e meia toca com eles.

Neste momento, nos concertos, os Retimbrar ainda tocam “música tradicional com um pendor mais festivo, porque resulta melhor”. Por piada às vezes ainda dizem ‘Ainda me lembro quando isto era um grupo de percussão’. E aqui e ali têm essa nostalgia. Diz Serginho: “Quando vamos tocar percussão para a rua a magia acontece logo, não é preciso microfones, nada. No palco é muito complicado, é muito difícil para um técnico de som fazer um som equilibrado. Já nos aconteceu não apreciarmos tanto o palco como a rua”. A ambição de recolha de instrumentos foi tanta que lhes colocou um problema: “Como é que fazes ouvir um ferrinho no meio de uma data de timbalões?”, pergunta Serginho.

No Bons Sons vão “dar um concerto dentro do género que [têm] dado”, diz Serginho: “Tocamos três ou quatro canções do disco, tocamos os ritmos todos do disco e mais umas três ou quatro músicas tradicionais, vindas de ranchos e outras fontes”. Por norma, “no início ou no fim dos concertos”, costumam “descer ao público e tocar só percussão”, mas desta vez não sabem se será possível.

Uma coisa é certa: vai haver “uma grande arrufada para chamar as pessoas para o palco”. Como quem diz: a festa vai começar. E preparem-se, porque se correr como é habitual, vai haver mesmo festa.

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