Ana Hatherly, a grandeza de uma artista

É pelo significado que continua a gerar, que se mede afinal a grandeza de uma artista.

Foto
Revolução Em 76, foi este filme que representou Portugal na Bienal de Veneza. Dr

Como medir a grandeza de um artista? A pergunta, mais actual que nunca, ressurge quando desaparece uma figura como Ana Hatherly, que morreu esta quarta-feira em Lisboa. Autora de uma obra singular e única no meio artístico português, foi também alguém que tocou e continua a tocar a sensibilidade de jovens e menos jovens artistas.

As reacções nos meios sociais não se fizeram esperar. Quase todas destacavam a curiosidade de Ana Hatherly, a mesma que a levou a experimentar técnicas, suportes, conjunções, intersecções entre disciplinas artísticas pouco comuns em Portugal. Que trabalhara a poesia experimental quase todos o ouviram dizer. Que foi uma académica respeitada, uma poetisa e uma tradutora exigentes, uma das primeiras criadoras a reflectir sobre a plasticidade - assim mesmo) de uma revolução experimentada ao vivo e, finalmente, alguém para quem a identidade de género, social e pessoal atravessava toda a obra, essas são facetas da personalidade de Ana Hatherly porventura muito menos conhecidas.

Desde muito cedo a artista preferia suportes e técnicas que se afastavam notoriamente do prestígio tradicional da tela pintada ou da volumetria esculpida. Revistas de circulação restrita e pequenos desenhos mostravam-se aqui e ali, confirmando um nome que aos poucos se iria colar à época mais criativa em Portugal dos últimos 50 anos. Esses trabalhos apropriavam-se da visualidade da poesia barroca e adaptavam-na à actualidade.

Foto
“O experimentalismo português entre 1964 e 1984”, uma das obras de Ana Hatherly Ana Hatherly

Anagramas, acrósticos e outros labirintos de sentido e imagem surpreendiam em alguém que sabíamos ser também uma académica conceituada, especialista justamente nessa poesia antiga, e que não hesitava, no seu impulso criador, em juntar pesquisa erudita e criação artística. E porque também era cineasta, realizou pouco tempo depois do 25 de Abril um filme – Revolução, de 1975 – que justapunha cartazes rasgados de carácter político filmados nas paredes de Lisboa nessa época inquieta. Em 76, foi este filme que representou Portugal na Bienal de Veneza.

Pouco a pouco, também por influência da filosofia oriental que a interessava, os anagramas barrocos foram sendo substituídos por novelos de frases quase ilegíveis, desenrolados segundo gestos contidos e repetidos sobre a folha de papel. Sempre discreta, nunca escolhendo a visibilidade por vezes tão ôca do meio artístico, Ana Hatherly seguiu a sua obra enquanto o corpo a deixou fazê-lo. Há muitos anos que estava doente. Há muitos anos que se retirara do mundo lisboeta, e que se mantinha apenas disponível para raríssimos amigos que continuavam a visitá-la.

Hoje, passados 40 anos desses tempos conturbados de mudança em Portugal, é altura para nos colocarmos a questão que abre este texto. O que é certo é que as semelhanças entre a arte da época e a arte que os jovens artistas hoje praticam são muitas.

Ana Hatherly inseria-se num grupo que, filiado longínquamente nos praticantes menos ortodoxos do imperativo da revolução surrealista, procuravam a origem mítica e comum entre escrita e desenho.Recorde-se como em Lisboa, uma ou duas décadas antes, Mário Henriques Leiria, O’Neill e outros escreviam /desenhavam poemas submetidos apenas à lei da liberdade. Mais próximo dela, Melo e Castro, ainda em Portugal, e muitos outros pela Europa fora interessavam-se por esta temática, praticando-a isoladamente ou em grupo.


Hoje, um número considerável de jovens e menos jovens artistas recusa a complexidade, a violência e a sofisticação que caracterizam o meio da arte internacional e regressam a uma espécie de estádio primordial da arte. Livros de artista, performances, comentários à conjuntura política, arte efémera – e  arte sobre fotocópias, quando é caso disso - podem constituir uma alternativa ao fechamento do mercado sobre os nomes mais ou menos consagrados, como é sempre o caso em tempos de crise. Pedro Barateiro, Vasco Araújo, Isabel Baraona, Susana Gaudêncio e mesmo, num certo sentido, Ângela Ferreira ou Filipa César são nomes a reter neste propósito de deixar que a arte transmita uma postura ética perante a vida.

Em certa medida, esta foi também a atitude de Hatherly. Não é por acaso que o filme atrás mencionado está agora patente numa exposição do Centro de Arte Moderna. É por aqui, pelo significado que continua a gerar, que se mede afinal a grandeza de uma artista.


Crítica de artes plásticas

Sugerir correcção
Comentar