A Turquia, a Síria e os Curdos

A actual guerra civil na Síria fez reemergir a questão curda dos vários lados da(s) fronteira(s).

1. A entrada do Médio Oriente na modernidade política ainda hoje tem sequelas. No final da I Guerra Mundial, o território imperial otomano fragmentou-se após a derrota militar e o colapso político. Sob as cinzas do Império, emergiu a República da Turquia como principal Estado sucessor.

Ao contrário do que se poderia supor, a sucessão não foi algo óbvio em termos de configuração territorial. Pelo contrário, o novo Estado ganhou forma num conflito político-militar contra as potências vencedoras com interesses no Mediterrâneo oriental: Grã-Bretanha, França, Itália e Grécia – a Rússia bolchevique fez uma paz separada em 1917. A confrontação principal ocorreu contra as pretensões territoriais da Grécia na costa Mediterrânica, especialmente centradas na zona de Esmirna. Terminou com a derrota e a trágica expulsão das populações gregas.

Mas a vitória militar dos nacionalistas turcos de Mustafa Kemal Atatürk, em 1922, teve outras consequências nas fronteiras. Para além de anular as pretensões territoriais gregas, outros dois grupos nacionais – arménios e curdos –, viram defraudadas as suas ambições de constituir um Estado independente. Ambas colidiam com territórios reclamados pelos nacionalistas turcos. Estes saíram largamente vitoriosos, excepto em dois casos ocorridos na fronteira Sul. As antigas províncias árabes do Império tinham ficado sob influência anglo-francesa, a coberto de um mandato da Sociedade das Nações (SdN). O movimento nacionalista turco reclamava Mossul, no actual Iraque, sob domínio britânico. A disputa sobre este território, ocupado pela Grã-Bretanha no final da I Guerra Mundial, foi submetida à SdN. Em 1925/1926 a decisão da SdN deu razão aos britânicos. A antiga província otomana, maioritariamente composta por populações curdas, passou a integrar o Iraque.

Quanto ao sandjak de Alexandreta, o actual Hatay turco, ficou sob domínio francês, embora, como será explicado mais à frente, a situação acabasse por ser revertida em vésperas da II Guerra Mundial. Em ambos os casos, as pretensões turcas colidiam directamente com os interesses das potências europeias no Médio Oriente. Face à relação de forças existente na época, a Turquia cedeu a contragosto.

2. O actual Estado da Síria resulta do território que chegou à independência em 1945/1946, face à França. O período do mandato da SdN foi determinante na sua configuração. A divisão administrativa do território feita pelos franceses está na origem da separação e posterior autonomização / independência do Líbano. Este foi desenhado como um Estado para uma maioria de cristãos maronitas, hoje cada vez mais minoritários. Em termos mais gerais, a lógica da administração colonial francesa foi repartir o território de acordo com as minorias religiosas mais substanciais que aí se encontravam. Assim, foi criado um Estado não independente, dos alauítas – o grupo minoritário de Bashar al-Assad – junto ao litoral, a Norte do Líbano, a sua principal região. Para os drusos, a Sul, foi criado um pequeno Estado não independente, num território próximo da actual fronteira com Israel e a Jordânia. O já referido sandjak de Alexandreta foi um outro território autónomo que integrou a Síria até 1938. Sendo uma zona de transição entre as populações turcas e árabes, na época do mandato tinha uma maioria de população árabe.

A componente demográfica foi-se alterando por infiltração de população a partir da Turquia. Face à reivindicação turca do território – e num contexto onde a França enfrentava uma crescente ameaça militar da Alemanha nazi na Europa –, o governo francês, em desrespeito do mandato da SdN, aceitou a anexação do território pela Turquia, sob o nome de Hatay. Esta anexação nunca foi reconhecida pela Síria, sendo um ponto de atrito entre os dois Estados. Provavelmente, uma das motivações do governo da Turquia para derrubar Bashar al-Assad foi a de ter um novo poder na Síria que, em troca de apoio, aceitasse de iure a actual fronteira.

Aspecto interessante do período do mandato francês da SdN – e relevante para a compreensão dos acontecimentos da actualidade – é o do papel das minorias. A população da Síria está maioritariamente ligada ao Islão sunita. No entanto, existem tradicionalmente substanciais minorias religiosas (alauítas, cristãos e drusos), que constituiriam cerca de 25% a 30% antes da guerra civil. Há, ainda, uma minoria étnica significativa: os curdos, estimada entre 8% a 10% da população – os restantes 90% são árabes. Sob a administração francesa, as minorias tinham um peso desproporcional nas forças militares e de segurança, em corpos como as Troupes spéciales du Levant, sendo vistas como mais confiáveis. Tratou-se de uma estratégia de dominação típica: o governante estrangeiro apoiava-se em grupos minoritários, concedendo-lhe privilégios e/ou proteção, para contrabalançar a maioria. Com o tempo, os principais beneficiários acabaram por ser os alauítas, vistos como seita herética pelo Islão sunita dominante. Com Hafez el-Assad chegaram ao poder em 1970, tendo governado a Síria até agora.

3. A actual guerra civil na Síria fez reemergir a questão curda dos vários lados da(s) fronteira(s): Síria, Turquia e Iraque. A excepção relativa é o Irão, mas mesmo aí existe um conflito armado latente, por vezes aberto. Sendo o maior grupo étnico sem um Estado, com mais de 30 milhões de pessoas – as estimativas naturalmente variam –, a questão curda é eminentemente transnacional. Os sucessos de autonomia / independência de facto de um lado da fronteira têm repercussões imediatas para além desta, nos Estados vizinhos, onde também habitam populações curdas. Os conflitos militares, ataques e/ou massacres de que frequentemente são vítimas também.

Nos anos 1980, o conflito teve o seu ponto mais crítico na Turquia, com o desencadear da rebelião armada do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). A partir dos anos 1990, foi progressivamente o Iraque que emergiu como o cerne da conflitualidade curda. Mais recentemente, com o desencadear na guerra civil na Síria em 2011, é no seu território que têm ocorrido os conflitos mais sangrentos. Classicamente, o problema é configurável como oposição política e/ou militar entre os grupos ou partidos curdos e o Estado onde residem. No entanto, face à fraqueza do poder estadual no Iraque e na Síria, que não controlam partes significativas do seu território, especialmente na Síria, surgiram actores no conflito com poder de facto. O Daesh (Estado Islâmico), é o caso mais óbvio. Na Síria e Iraque, as suas áreas implantação colidem com as zonas curdas. Sendo um grupo islamista-jihadista oriundo do Islão sunita, o seu zelo fanático coloca-os em rota de colisão com os curdos, apesar destes serem também sunitas na sua grande maioria. A explicação “oficial” é dada na revista Dabiq, nº 2, p. 13, 2013 (ver The Clarion Project, http://www.clarionproject.org/news/islamic-state-isis-isil-propaganda-magazine-dabiq). Os curdos – especialmente o PKK, na Turquia e montanhas fronteiriças do Iraque, e as Unidades de Protecção Popular (YPG), na Síria, são ateus marxistas, e, por isso, um alvo a abater. Até agora, para o governo da Turquia, o Daesh era apenas um grupo islamista-jihadista que fazia o trabalho sujo no terreno contra os curdos.

Com os últimos desenvolvimentos no seu próprio território – recente ataque terrorista na cidade fronteiriça de Suruç –, o actual governo conservador-islamista tem múltiplos motivos de preocupação e de irritação. A Turquia dispõe da parte mais substancial da população curda o que aumenta o risco de internalização do conflito. A crescente independência de facto dos curdos do Iraque e Síria – e agora também a simpatia internacional ganha na heróica resistência em Kobani contra o Daesh –, é vista como um mau exemplo para os seus próprios curdos. Tem, ainda, o “amargo de boca” de ter perdido a maioria absoluta nas eleições legislativas de 7/06/2015 devido ao sucesso eleitoral de um partido curdo, o Partido Democrático dos Povos (HDP). Este ultrapassou a nada democrática barreira dos 10% de votos para eleger deputados. Neste contexto, a permissão dada aos EUA para usarem a base de Incirlik, os ataques aéreos ao Daesh e a criação de uma “zona de segurança” em território sírio, são uma cobertura de legitimidade internacional (leia-se da NATO). Política e estrategicamente o maior problema da Turquia é a luta contra os independentistas curdos na conturbada fronteira Sul e não o islamismo-jihadista. A isto acresce a ambição nostálgica de recuperar a influência perdida nas províncias árabes do Império.

Investigador

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