Condenados às imagens

Uma exposição que interroga o poder das imagens na era digital — que nos interroga a nós

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Sob as Nuvens obriga-nos a pensar no modo como, na era do Facebook, o amor pelas imagens se transmutou no controlo através das imagens

As nuvens sempre ocuparam um lugar privilegiado no nosso imaginário e, claro, nas representações do mundo. Em parte, o nosso fascínio por elas deve-se à sua quase imaterialidade, ao aspecto difuso e à sua qualidade de resistir a qualquer tentativa de reificação material. Escapam a todos os gestos humanos, não se deixam colonizar, são elementos de resistência e, simultaneamente, lugares imateriais do fascínio humano pelo incondicionado. Este incondicionado transformou-se, especialmente, no pós-Segunda Guerra Mundial: as nuvens passaram a significar simultaneamente o terror, a morte, o trauma — a nuvem da bomba atómica — e o controlo da vida — a nuvem computacional e digital. Esta exposição em Serralves, comissariada por João Ribas, é sobre esta transformação.

Saliente-se o modo como o visitante é confrontado com a ideia de que a arte contemporânea é um território onde as categorias estéticas que têm guiado a experiência com a arte precisam ser revistas à luz de novas dinâmicas criativas e dos novos imaginários e meios artísticos. O lugar da beleza, da prodigalidade artística, do valor material foi tomado por um processo de consciencialização da realidade, reclamando a obra de arte como lugar de articulação de um conhecimento objectivo do mundo. Trata-se de uma intensificação da relação com a realidade que marca a arte do nosso tempo. E o papel que a realidade possui não é o de um lugar que é preciso representar artisticamente, mas o de um lugar onde a arte tem de actuar. Não é o lugar de onde se retiram e deslocam os motivos, os elementos, as inspirações, e às vezes os materiais que compõem as obras, antes diz respeito ao espaço comum onde é preciso agir. A imaginação do artista parece ter deixado de ser guiada pela construção de um universo onírico e próprio, e passado a ser guiada por uma consciência crítica do mundo e dos seus processos políticos e antropológicos de transformação — uma transformação da ambição artística que, aliada às novas tecnologias, faz actualmente da arte um território que exige a descoberta de outras formas de ver uma exposição e de estar num espaço expositivo: a serena, silenciosa e imóvel contemplação dá lugar a uma experiência fisicamente intensa, com barulho, com obras que flutuam, que se mexem, que exigem interacção, etc.

Sob as Nuvens

 obriga-nos a pensar na forma como o amor pelas imagens se transmutou no controlo através das imagens. Num mundo em que fomos transformados em seres que trabalham e consomem 24 horas por dia, sete dias por semana, as imagens são instâncias de controlo: imagens digitais, captadas por telemóveis, por câmaras de vigilância, feitas por amadores, em todas as situações e a todo o tempo, colocadas na Internet sem autoria ou destinatário certo; imagens que valem pelo seu poder de circulação, pelos 

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, pelas partilhas, pelos comentários que geram. Este é agora o seu poder, e estas são agora as nossas imagens, num mundo novo em que a Internet se tornou o lugar dos nossos afectos, como é proposto nesta exposição. Uma transformação digital que portanto já não diz respeito tanto à visualidade do mundo, mas à criação do mundo que existe numa nuvem, ou seja, num lugar abstracto que contém tudo e que será o solo onde os arqueólogos do futuro terão de escavar para encontrar as ruínas do nosso presente: lá estarão as torres do World Trade Center com os seus mortos, as guerras do Iraque, etc.

A dúvida que esta exposição gera é se, de facto, o digital é o novo sublime ou se é preciso encontrar uma outra categoria para apresentar esta condição das imagens digitais que existem numa nuvem terrena algures no meio de um deserto. Este é o paradoxo que a exposição contorna: ao contrário das nuvens que no céu sempre nos acompanharam, estas nuvens digitais são materiais, existem em servidores construídos por arquitectos e engenheiros nos países politicamente mais convenientes, têm fronteiras e à inefabilidade da nuvem meteorológica contrapõem lugares policiados e terrenos. Sob as Nuvens não é por isso uma exposição consensual e a sua pertinência está no modo como, através do desconforto que provoca, obriga a fazer perguntas sobre a nossa condenação às imagens, à Internet, ao digital.

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