O principal alvo de Ancara são os curdos

Erdogan declarou enterrado o processo de paz com o PKK, ao mesmo tempo que quer levantar a imunidade dos deputados pró-curdos que lhe roubaram a maioria.

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Demirtas acusa Erdogan de ter boicotado um plano de desarmamento do PKK Adem Altan/AFP

Horas antes do início de uma reunião da NATO pedida por Ancara, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, pôs em palavras o que as acções do Governo do seu AKP já tinham demonstrado: “Não é possível continuarmos um processo de paz com aqueles que ameaçam a nossa unidade nacional”. Pouco depois, um porta-voz do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, pós-islamista) arrepiava caminho, garantindo ser demasiado cedo para declarar mortas as negociações com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que o próprio Erdogan iniciou em 2012, quando era primeiro-ministro.

A semana passada, um atentado suicida reivindicado pelo Estado Islâmico matou 32 activistas curdos no Sul da Turquia. As autoridades aproveitaram para declarar uma “guerra total ao terrorismo”, uma ofensiva que não distingue jihadistas dos rebeldes curdos. Entretanto, foram detidas centenas de militantes curdos no país. Membros do AKP já pediram a ilegalização do HDP (Partido Democrático do Povo), a formação pró-curda que nas eleições de Maio roubou a maioria ao partido de Erdogan, impedindo-o até agora de formar um novo governo.

Erdogan aposta noutra via, defendendo o levantamento da imunidade parlamentar aos deputados do HDP. Assim, diz, poderão “pagar o preço” pelas suas ligações “a grupos terroristas”. Assim, ficarão impedidos de se candidatar nas mais do que prováveis eleições antecipadas, previstas já para o Outono. “Não cometemos quaisquer crimes”, diz o líder do HDP, Selahattin Demirtas, acusando Erdogan de ter boicotado um plano de Abdullah Öçalan (fundador do PKK e líder histórico da guerrilha curda, na prisão) para apelar ao desarmamento dos seus seguidores. “O nosso único crime foi termos conseguido 13% dos votos.”

O maior povo sem Estado, perseguido por Saddam Hussein e marginalizado por Bashar al-Assad, os curdos têm-se tornado parceiros cruciais para os países ocidentais envolvidos nos conflitos da região. Já foi assim com os curdos do Iraque, que beneficiam de uma autonomia alargada (uma independência em tudo menos no nome) e que a Turquia chegou a bombardear em 2007, antes de se convencer que nada podia contra a realidade chamada Curdistão iraquiano, um farol para os curdos espalhados pela região e pelo mundo e um aliado fundamental dos Estados Unidos na luta contra os radicais que desde o ano passado entraram no Iraque.

O mesmo acontece com os curdos da Síria, que aproveitaram a guerra para estabelecer zonas de auto-governo e, de caminho, se tornaram nos únicos suficientemente organizados para combater os jihadistas e ajudarem a coligação criada pelos EUA a fazê-lo. As YPG (Unidades de Defesa do Povo), as milícias do PYD (Partido da União Democrática) têm somado vitórias e conquistado território ao longo da fronteira, no chamado Rojava, Curdistão sírio ou Curdistão ocidental. Com conselhos de governo, as províncias desta região têm hoje tribunais, polícias e leis próprias. Nas sedes das YPG e da polícia, a Asays, nunca falta um retrato de Abdullah Öçalan.

Muitos líderes do PYD e membros das YPG aprenderam a combater nas montanhas curdas da Turquia e foi a sua proximidade ao PKK que lhes deu o avanço necessário para se imporem como novos senhores das zonas curdas da Síria. Quando as YPG resistiam ao Estado Islâmico na cidade de Kobani, junto à fronteira, os membros do PKK quiserem ir em seu auxílio e a Turquia não o permitiu.

A maior ameaça
Desde sexta-feira que a Turquia bombardeia posições curdas; assegura que o alvo não são as YPG, apenas o PKK. A questão é que uns e outros são os mesmos. “A maioria das nossas forças que têm sido alvo dos raides estavam a preparar-se para ir combater o Estado Islâmico”, diz Zagros Hiwa, porta-voz do PKK, citado pela Time.

Um analista político que vive em Erbil, capital do Curdistão iraquiano, ouvido pela revista norte-americana, defende que os recentes ganhos dos curdos no terreno, a par da crescente legitimidade política aos olhos do Ocidente, os tornaram numa maior ameaça para a Turquia do que o Estado Islâmico. “O medo começou quando os curdos derrotaram o Estado Islâmico em Tel Abyad”, onde existe um posto fronteiriço, defende Hoshang Waziri.

Hoje, as redes sociais turcas estão cheias de cartazes com fotografias de heróicos milicianos curdos onde se lê: “Nós salvámos os yazidis [minoria religiosa atacada pelo Estado Islâmico na Síria e no Iraque], nós libertámos Kobani, nós derrotámos o Estado Islâmico, e agora Erdogan quer matar-nos…”

É isto que muitos curdos pensam. A AFP visitou Diyarbakir, a grande cidade de maioria curda no Sudeste da Turquia, e encontrou habitantes que já deixaram de sair à rua depois das 17h e temem uma nova guerra aberta entre o Exército e os rebeldes – o pico dos confrontos aconteceu nos anos 1990, quando se multiplicavam os atentados e os raides punitivos de Ancara, numa guerra que fez mais de 30 mil mortos em três décadas.

Sentado à mesa da NATO, o Governo turco diz admitir um papel para as YPG numa futura Síria. No palácio presidencial de Erdogan, discutem-se formas de decapitar o HDP e derrotar de vez o PKK. O jogo de Ancara é arriscado, tanto em termos de política interna como na geostratégia regional. Por mais que queira usar as suas bases na Turquia no combate ao Estado Islâmico, Washington não pode abdicar da aliança com os combatentes curdos no terreno. E muitos turcos podem não gostar de mais esta manobra do AKP, um partido disposto a tudo para se agarrar ao poder.

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