A Culpa Não Foi Minha (monólogo dos dias instáveis)

Texto de Jaime Rocha (pseudónimo de Rui Ferreira de Sousa, poeta, escritor, jornalista e dramaturgo) a partir das fotografias de Valter Vinagre para Posto de Trabalho (Museu da Electricidade, Lisboa, até 20 de Setembro).

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Da série Posto de Trabalho Valter Vinagre
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Um pinhal, uma Mulher sentada,

só, no meio das árvores.

Espalhados no chão, como cenário,
um cadeirão, um colchão, uma manta,
papéis, uma boneca, uns sapatos vermelhos,
almofadas, uma mesinha, uma imagem religiosa,
Ao fundo, uma cabana de madeira
com uma porta de plástico, entreaberta.

Um Homem, com uma máquina fotográfica
pendurada ao pescoço, aproxima-se.

A Mulher levanta-se, diz,

– Ah, sempre veio, pensei que estava a brincar,
que era mais um desses que me aparecem aqui
a dizer que são pintores, músicos, notários,
coisas assim, disto e daquilo,
mas vejo que o senhor
é de palavra, disse que havia de vir e veio,

mas como lhe disse da outra vez
há coisas que uma mulher não pode fazer
como é o caso de entrar dentro disso
e ficar registada, não gosto de me ver
nas fotografias,
e depois o meu homem,
está a ver,
como ele ficaria,

eu sou uma mulher séria…

Pausa

olhe, espere um bocadinho,
tenho que atender aquele
cliente, fique à vontade, vá vendo,
eu venho já, é só
um minutinho…

A Mulher desaparece por momentos
no meio das árvores.
Regressa a guardar o dinheiro numa bolsinha
que esconde na cabana.
Senta-se.

– Eu não queria, fiz um esforço,
atirei-me aos pés dele,
pedi-lhe por tudo que não me deixasse,
mas ele não queria saber,
era o dinheiro, o dinheiro,

queria vestir bem, andar aperaltado quando
ia jogar às cartas,

a culpa não foi minha, apaixonei-me por ele.

Porque fui eu embicar num gajo destes,
não me dizem?

Olhe ali aquele cadeirão, tá a ver, creme,
foi ele que o trouxe numa carrinha,
disse que era para eu descansar entre um cliente
e outro, que eu me encostasse a fumar um cigarro
e também para me limpar,

um gajo destes,
«olha sentas-te, abres as pernas e limpas-te,
assim escusas de o fazer de pé, inclinada,
ou sentada no chão, podes constipar-te,
adoecer»,

ele a dizer-me que eu posso adoecer,
o malvado,

eu digo ao senhor,
e estou a contar-lhe isto porque
você me está a pagar e não quer nada de mim
e assim até faço um intervalo,

é que eu gosto dele e sabe porquê,
porque nunca me levantou a mão,
foi tudo sempre a bem, com beijinhos
e lanches com torradas e Compais,

ele a confessar-me,
«és a mulher da minha vida,

mas eu sou um homem,
tenho as minhas necessidades»,

eu digo ao senhor,
gosto que ele ande bem arranjado,
que se mostre diante dos outros,
já não digo como um doutor,
mas como um pai de família,

eu depois pus o cadeirão encostado àquela árvore,
para ter sombra e se for necessário
pendurar uma blusa a secar,

ali há outro cadeirão, mas esse é vermelho,
os homens gostam do vermelho,
é para se sentarem e tirarem os sapatos,
se quiserem,
há quem fique o tempo todo calçado,

e vê aquele chapéu de chuva, é para abrirem,
para se taparem se quiserem tirar as cuecas,
e se chover ajuda,

Pausa

olhe, eu digo ao senhor,
não entra homem calçado ali dentro da cabana,
mesmo se chover,
é como se fosse uma basílica, a minha casa,
não sei se o senhor acredita, mas eu sou crente,
na Senhora de Fátima e na Nossa Senhora
da Consolação,
são as duas que me guardam,

já veio aqui um padre,
queria que eu me confessasse
e umas senhoras de outra religião,
eu disse-lhes,
sou uma mulher honesta, trabalho,
faço a minha vida,
não chateio ninguém, ali dentro na cabana,
tenho tudo limpo, cortinas, cama, almofadas,
uma cadeirinha de plástico
para o cliente se sentar e falar,
uns só falam, depois cansam-se
e pedem para urinar,
e eu indico-lhes,
ali por detrás do cobertor que está
pendurado entre as árvores,

o meu homem disse-me,
«faz o teu trabalho,
as outras necessidades fisiológicas
têm que ser escondidas,
não quero que vejas essas coisas»,

Pausa

sabe, senhor,
o meu homem chegou a estudar,
mas o pai dele morreu
e ele teve que se fazer à vida,
está a ver, um rapaz de 14 anos que labutou
até aos 25 para ajudar a mãe,
ele era em armazéns, em oficinas, nas obras,
até andou
a distribuir botijas de gás,
foi quando o conheci,
agarrava em duas botijas de gás
e punha-as aos ombros, duas de cada vez,
foi nesse mesmo momento
quando ele entrou em minha casa,
estava eu em combinação,
que eu disse a mim mesma,
é este, este é o homem da minha vida,

já vi que o senhor é de boas famílias,
com uma máquina dessas,
mas como lhe disse eu não posso aparecer,
uma mulher como eu é como se vivesse
numa prisão, numa outra vida,
já viu eu aparecer no jornal, era logo no café,
no prédio, logo nesse dia
toda a gente a apontar-me,
a criticar-me, a mandar-me à cara,

«olha o teu filho, o que vai ele dizer da mãe»,
eu tenho uma fotografia dele aqui na carteira,
onde é que ela está, olhe está aqui,
não é uma maravilha,

Pausa

ah, espere,
agora é que estou a ver ali os meus sapatos,
encostados àquela árvore,
não saia daí,
olhe, limpos como uma toalha de mesa,
até os podia lamber,
há aí um cliente, aliás, ele vem cá muitas vezes,
só quer lamber os meus sapatos, mais nada,
chega, lambe, lambe, até ficar com a boca
e a cara toda encarnada de tinta,
paga e vai-se embora, gosta de sapatos vermelhos,

Olhe, senhor,
hoje nem dei por ele,
deixei os sapatos ali onde os fui buscar agora,
ele deixa o dinheiro na caixinha que tenho ali,

onde está ela?,

olhe ali ao pé daquela tábua em cima dos tijolos,
a fazer de mesa,
deve estar ali debaixo, eu confio nele,
só que hoje tenho ainda que limpar a baba dele
nos sapatos pode ser que amanhã ele volte,

Pausa

está aborrecido com a minha conversa,
pode entrar na cabana,
tenho ali uma colcha azul em cima da cama
e um encosto forrado com um pano às flores,
os homens gostam muito desse encosto,

entre, esteja à vontade, não há bichos,
eu até ponho um perfume no ar,
mas não precisava, porque aqui o ar dos eucaliptos
invade tudo e é um regalo,
está a ver tudo arrumado, limpinho,
pode fotografar à vontade,
não tenho vergonha, até tenho um tronco a fazer
de móvel para colocar as águas e o tabaco,

como pode ver, é um palácio, é a minha basílica,

agora, ali mais à frente, não se pode,
é só plásticos e lixo, uma manta no chão,
folhas por baixo, para amaciar,
uma mulher até se sente mal,
não tem nada a ver comigo,
nem o meu homem o permitia,

são outras, não sei, pouco falo,
parece que são romenas ou brasileiras,
eu não me meto, o meu homem diz-me,
«a tua vida é a tua vida, a das outras
é lá com elas»,

comigo é assim, digo-o ao senhor,
está ali uma casinha de madeira,
vedada com plástico,
com porta e tudo,
o meu homem montou lá um chuveiro
e colocou uma bilha de gás,
tudo só para mim,

às vezes uma delas vem e pede-me
para tomar duche,

eu digo, são 10 euros por banho,
mas de resto não falo, não dou sentenças,
não sei se são da Rússia ou do Brasil,
não importa, têm os chulos delas,
até vêm uns polícias, não quero saber,

o meu homem é que trata de falar com eles,
este espaço é meu, como ele diz,
«este território é teu, aqui não entra mais
mulher nenhuma, ouviste»,

e depois diz,
«esta é a tua basílica»,
ele sabe que eu sou crente e que rezo,

Pausa

olhe, vou mostrar-lhe,
mesmo ao lado destas árvores,
tá a ver, quando vim para aqui era assim,
ainda não tinha a cabana,
eram só dois cobertores agarrados às árvores,
um plástico branco, com uma chapa por cima,
a fazer de telhado e uma cadeira de esplanada,

pus no chão uma cama dessas de molas,
usada, tapada com um pano azul,
e era ali que trabalhava,

depois é que vi que cada cliente tem a sua cor,
uns querem um pano amarelo, outros vermelho,
outros castanho, enfim,

depois deixava penduradas nesta árvore,
mesmo à entrada, as minhas calcinhas
e os soutiens, a enxugar e eles gostavam de ver,

mas o mais assim, coiso, como hei-de dizer,
chorava, só queria encostar a cabeça ao meu colo,

senhor,
eu estou a dizer-lhe isto, porque confio,

vinha e pedia as bonecas,
estas que tenho aqui guardadas numa gaveta,
onde é que elas estão,
aqui, tá a ver, estas bonequinhas,
foi ele que as trouxe,
vestidinhas com cuequinhas e uma blusinha,
ele despe-as e depois chora
com a cabeça ao meu colo,

o meu homem já me disse para eu
me desfazer dele,
mas eu tenho pena,
depois ele traz-me rebuçados e bolos sortidos,
o que posso eu fazer,
acho que o meu homem tem ciúmes,
ora ele não me faz nada,
apenas chora no meu colo,

é uma criança, digo-lhe,
mas o meu homem responde,
«é mas é passado dos cornos»,

ora, senhor,
ele nunca me fez mal,
chora baba e ranho, não sei,
acho que vou ficar com ele mais uns tempos,
nem que tenha que mudar a hora,
não vá o meu homem aparecer por aí
e dar-lhe uma facada,

já fotografou, posso guardar as bonecas?

Isso afinal é para quê, para um exposição,
para um filme,

olhe,
eu gosto muito de filmes,
daqueles deles a beijarem-se
ou a irem de automóvel
pelas serras com os vidros abertos
e o vento a bater na cara,
eu gosto desses filmes que mostram o mar
e os barcos e elas em fato de banho estendidas,
de óculos escuros,

o meu homem leva-me todos os meses
a ver uma matiné
num centro comercial e já me disse,
um dia vamos a Veneza,
eu gostava, parece que é uma cidade que anda
em cima da água de um lado para o outro,
eu já vi no cinema, fazem-se lá muitos casamentos…

Pausa,
Levanta-se, procura os cigarros
e volta a sentar-se.
– Ah, com tanta conversa até me esqueci
de fumar, não se importa,
eu pergunto sempre, faz parte do meu dever,

Pausa, um pouco mais prolongada,
pega num pequeno espelho
e arranja o cabelo.

– Eu vou confessar-lhe uma coisa,
ainda não disse a ninguém,
mas está aqui atravessado,

há um senhor que vem cá todas as semanas,
é o das quartas,
sempre à quarta-feira,

apareceu-me um dia, até estava assim o tempo
com nevoeiros e humidades,

e disse-me, foi logo a primeira coisa,
«chamo-me Ortov, peço-lhe desculpa,
mas eu vou morrer daqui a três meses»,

Pausa

eu fiquei sei lá como, assim de repente,
alguém que sabe que vai morrer,
meu deus, olhe para mim, os meus cabelos
até parece que se levantaram, fiquei branca
como a cal, tive até que pôr um pó-de-arroz,
minha santíssima,
nunca me tinham dito aquilo,

depois calou-se, ficou a olhar para mim,
como uma alma sem destino,
e eu sem saber o que fazer,
o que é que ele queria, nem a si o posso dizer,

o senhor compreende,
há segredos que as mulheres não podem revelar,

estou a confessar-lhe isto porque
tenho que desabafar,

da última vez,
faz hoje um mês que ele veio,
e disse-me,
«vou morrer para a semana»,

E eu, o que é que lhe podia dizer,
Então saiu-me,
«oh senhor Ortov não faça isso
que lhe faz mal»,

e não é que ele começou a rir,
a rir, a rir e nunca mais parava,
até se engasgou, coitado,
ia-me morrendo nos braços,
ali todo curvado de tanto rir,

e, veja só, disse-me,
assim de uma assentada,
«Tu és o meu girassol, o meu lindo girassol»,

até os olhos se me arregalaram,
nunca me tinham chamado aquilo,

como é que ele sabia que é a flor
de que eu mais gosto,

e depois foi mais longe,
«anda comigo, vamos viver os dois
para um campo de girassóis».

Limpa os olhos com um lenço

– Eu digo-lhe, deu-me uma vontade
de chorar, coitado, a falar-me assim ao sentimento,
a saber que ia morrer na semana a seguir,
eu ainda lhe respondi,
«ora senhor Ortov, não me diga isso»,

mas ele foi-se embora e nunca mais
apareceu, coitado…

Pausa

está a ver,
a minha vida é assim,
uns vêm e não voltam, outros sim,
como as andorinhas.

Levanta-se, fuma outro cigarro.

– Olhe, não sente o cheiro dos eucaliptos,
isto é que me agarra à vida,
é o meu filho e os eucaliptos,

já vieram cá uns senhores a dizer
que mais dia menos dia cortam isto tudo
para construírem condomínios,
que temos que sair daqui,

mas diga-me,
para onde é que eu vou,
tenho aqui a minha basílica, as minhas coisas todas,
os meus sapatos, as almofadas, as mantas,
até vasos de flores como pode ver,

o senhor já viu alguma vez em alguma parte do mundo
mudarem uma basílica de um lado para o outro,
não viu pois não, então…

Pausa

olhe, desculpe, não leve a mal,
vem aí outro cliente,
tenho que atender,

não se vá embora, é só uns minutinhos,
eu venho já…

O fotógrafo afasta-se devagar,
desaparece ao fundo do pinhal,
a Mulher ainda o vê
enquanto guarda o dinheiro.

– Senhor, venha cá, não se vá embora.

Senta-se depois na mesma cadeira,
compondo o cabelo, cantarolando.

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