Um vídeo para defender "a democracia e liberdade de uma Angola plural"

Mais de 20 cidadãos e figuras da cultura de Portugal e Angola exigem a libertação de activistas presos em Luanda e Cabinda e respeito pela liberdade. “Vivemos um momento decisivo, onde é preciso posicionar-nos, sem receios."

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O escritor José Eduardo Agualusa é um dos participantes no vídeo Daniel Rocha

O vídeo-manifesto Liberdade Já!, lançado em Angola esta semana, é um apelo directo e aberto, para uma acção imediata: a libertação dos activistas presos em Luanda, há mais de um mês, e em Cabinda, desde Março. Os organizadores convidaram “cidadãos anónimos e personalidades públicas” para uma mensagem plural.

Uns começaram por querer participar e depois reconsideraram. Outros recusaram. Mas muitos outros não hesitaram. O movimento que organiza a iniciativa já recebeu entretanto mais depoimentos, e vai lançar um segundo vídeo. "Vivemos um momento decisivo, onde é preciso posicionar-nos, sem receios. É importante quebrar o silêncio, e defender os nossos direitos enquanto cidadãos, defender a liberdade e a justiça social", escrevem ao PÚBLICO.

Numa frente comum, mais de 20 músicos, actores, artistas plásticos, produtores culturais, activistas ou jornalistas, advogados, intelectuais dão a cara pela liberdade dos activistas, contra os quais não foram apresentadas provas de actos de rebelião, de que são acusados pelo Governo angolano de José Eduardo dos Santos.

Estão lá os escritores José Eduardo Agualusa ou Ondjaki, os músicos Kalaf ou Nástio Mosquito, Filipe Melo ou Capicua, Aline Frazão, o actor Pedro Hossi, o fotógrafo Sérgio Afonso, e muitos outros. A partir de Angola ou de Portugal. Alguns só agora começam a tomar posição, juntando-se a personalidades como Agualusa que já tinha posto em palavras a incredulidade perante as detenções e descrito o endurecimento do regime do Presidente angolano, no poder há 36 anos.

”É chegada a hora de sermos mais abertos e tomarmos uma posição individual ou colectiva”, diz Kiluanji Kia Henda, artista plástico reconhecido internacionalmente. Chegou o momento de as pessoas em Angola saírem dos “seus afazeres”, diz, e que “se sintam encorajadas” a participar. “É importante assumirmos uma posição pública e frontal. Dar a cara por uma causa, a liberdade. Mesmo sendo uma contribuição tão singela para um assunto que me parece grave, é preciso levar outras pessoas a participar. Criar uma corrente.”

Os jovens do Movimento Revolucionário em Angola que desde 2011 apelam a mudanças no país tentaram globalizar a sua acção através das redes sociais. A sua voz nem sempre conseguiu passar fronteiras. Muitas vezes foram perseguidos, viram as suas casas invadidas pela polícia, foram ameaçados ou detidos. Alguns foram torturados, estiveram presos sem acusação. Agora, este apelo global já tem milhares de partilhas nas redes sociais, em sites de notícias e no YouTube.

Meios pacíficos
É importante “usar todos os meios pacíficos para prestar a nossa solidariedade para com as pessoas que estão presas, há mais de um mês, sem qualquer acusação, numa prisão a mais de 100 quilómetros de Luanda. Em solitárias”, dizem os promotores.

Entre todos os presos — Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Albano Bingobingo, Arante Kivuvu, Benedito Jeremias, Domingos da Cruz, Fernando Tomás “Nicola Radical”, Hitler Jessia Chiconda “Samusuku”, Inocêncio Brito “Drux”, José Hata “Cheik Hata”, Luaty Beirão (o rapper Ikonoclasta), Nelson Dibango, Nito Alves, Nuno Álvaro Dala, Osvaldo Caholo, Sedrick de Carvalho, o capitão Zenóbio Zumba, Manuel Faustino —, 13 foram detidos num só dia, quando se reuniam numa residência em Luanda, para debater política à volta de um livro sobre resistência não-violenta contra a opressão. Outros três foram detidos nos dias seguintes, juntando-se a Marco Mavungo, que continua preso desde que foi acusado de rebelião por organizar uma manifestação pacífica em Cabinda, há mais de quatro meses.

“O meu sonho era se os próprios presos vissem o vídeo. Mas isso não é possível”, diz Cláudio Silva, gestor do portal Luanda NightLife e amigo de muitos deles. Muitos dos pelo menos 17 detidos estão fechados numa cela solitária durante 23 horas por dia, sem ver a luz do dia. Começaram a receber visitas. Mas nada mais, diz Cláudio Silva. “É uma grande injustiça e queríamos fazer alguma coisa. Não temos qualquer noção de quando serão libertados.”

No final de Junho, o líder parlamentar do MPLA (partido no poder), Virgílio de Fontes Pereira, falou da “seriedade dos acontecimentos”, perante as informações apresentadas aos líderes das bancadas parlamentares pelo
procurador-geral da República João Maria de Sousa, o ministro do Interior Ângelo Veiga Tavares e o director dos Serviços de Investigação Criminal, comissário-chefe Eugénio Pedro Alexandre, quando estiveram na Assembleia Nacional para explicar as circunstâncias das detenções.  

Momento e oportunidade
No vídeo lançado esta semana, Nástio Mosquito surge amordaçado, pano preto que lhe enche a boca. Só se liberta dele no final, para exigir “liberdade aos presos políticos, já”. O artista plástico e músico angolano juntou-se ao grupo que procurava “tomar uma posição, por mais simbólica que seja”. A sua mordaça simboliza duas camadas de pensamento: dizer que, “apesar de amordaçados, temos a capacidade de pensar e articular pensamento”, mas também representar “a autocensura”, explica ao PÚBLICO por telefone a partir da zona de Lisboa.

“Todos temos a noção de que há perigos quando se tomam posições políticas, mas muitos daqueles que admiramos na História do mundo tiveram a capacidade de não se autocensurarem. Estar amordaçado e ter a capacidade de dar um passo em frente e declarar um posicionamento é um acto, enquanto indivíduos, extremamente importante — é algo que nós, enquanto angolanos, estamos a aprender a fazer.”

O músico, realizador e argumentista Filipe Melo enfatiza a impossibilidade da sua inacção. “Para mim é uma tarefa muito fácil” participar no vídeo, exigir respeito pela liberdade de expressão, “porque se tenho uma opinião sobre o que se passa em Angola posso dizê-lo”, ao contrário de quem está no país e é perseguido. Fala em “falsa democracia”.

Kalaf Epalanga, músico e cronista, sentiu-se, como muitos dos que se mobilizaram para o vídeo, de "mãos atadas" perante o caso dos activistas detidos. "A acusação ainda não foi formalizada", acautela, apreensivo com a situação frágil dos activistas, que acredita que "não são criminosos" e devem "poder responder em liberdade" — "é uma questão de direitos humanos, ninguém quer obstruir a justiça nem atrapalhar o trabalho da procuradoria-geral" angolana. "O que é importante é não destruir estes jovens". E que o vídeo inspire mais pessoas a participar na discussão.

Sobre a situação do país, Nástio Mosquito evoca "uma falta de capacidade de avançar", "um sistema que não está a identificar o momento que está a viver, as oportunidades que tem nas mãos quando tem jovens interessados, envolvidos, disponíveis para contribuir e participar naquilo que Angola pode ser no futuro". Um direito constitucional. Actos como a detenção destes jovens mostram "uma clara incapacidade de crescer, de ver formas diferentes de exercer a democracia e liberdade de uma Angola plural".

"Cada um daqueles jovens está-nos, de forma indirecta, a oferecer uma oportunidade. De nos chegarmos à frente. Seria um desperdício tremendo do que têm estado a fazer", diz Nástio Mosquito, identificando agora "uma oportunidade" de "celebrar a liberdade de expressão" também em Angola.

Capicua, a rapper portuense, participa no vídeo e vai continuar pelas redes sociais, nos concertos, a falar deste "episódio chocante". Espera que vídeos e acções como esta, com personalidades públicas e activistas empenhados, criem um "contágio" no poder da sociedade civil e que "o medo" se vá vencendo.

Tal como Kalaf Epalanga ou Filipe Melo, a rapper frisa que a sua presença no vídeo é a de uma cidadã e não necessariamente de uma "artista". "Custa-me ver uma pessoa que faz o que eu faço ser reprimida por exercer o seu direito à liberdade de expressão", reflecte. "Como rapper, como artista, como pessoa que tem uma opinião política e uma voz activa no meu país, só posso ser solidária com as pessoas que o fazem noutros países e sobretudo na lusofonia, em que é tudo tão partilhado", diz a cantora. "Podia ser eu", frisa, "podíamos ser todos nós".

Notícia actualizada e corrigida dia 22 de Julho: acrescenta a posição que tem sido veiculada pelo MPLA e esclarece a carreira de Luaty Beirão

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