Tentar olhar adiante

Não existe, por parte do Estado, qualquer política museológica, como também não existe nenhuma política para as colecções públicas, mormente as de arte moderna e contemporânea.

A demissão de David Santos do lugar de Director do Museu Nacional de Arte Contemporânea — Museu do Chiado é um acontecimento a todos os títulos negativo porque interrompe um projecto que se adivinhava de fôlego estratégico por parte de um profissional competente e que começava a dar resultados visíveis. Por outro lado põe a descoberto as enormes fragilidades da actuação do Secretário de Estado da Cultura, nomeadamente em relação à política de colecções públicas em Portugal.

O que é manifesto (e independentemente do antigo espólio é excessivo chamar-lhe colecção — da Secretaria de Estado da Cultura dever estar localizada no Museu do Chiado, tal como o Secretário de Estado decidiu há ano e meio, ou no Museu de Serralves, como ele agora parece preferir, revogando-se) é que não existe, por parte do Estado, qualquer política museológica, como também não existe nenhuma política para as colecções públicas, mormente as de arte moderna e contemporânea. Não que essa ausência seja surpreendente: em nenhum campo da cultura este governo deixa qualquer marca positiva, legando situações pantanosas na Direcção Geral das Artes, no Museu do Chiado, no Museu dos Coches. A respeito deste último, o caso é, aliás, extraordinário: o que abriu no edifício desenhado por Paulo Mendes da Rocha não é um museu. É uma garagem para coches, tão excitante como qualquer garagem recheada com veículos luxuosos, mas é só isso. Claro que isto não tem nada a ver com a qualidade do edifício (que poderia ser objecto de outro debate), mas com o facto de um museu ser um serviço de disponibilização pública, preservação e estudo de uma colecção, activando os processos de mediação com o público que forem adequados, quer em termos da experiência pública, quer em termos mais estritamente educativos e de interpretação. Assim, um museu sem museografia não é um museu, é um armazém. Não se abre, portanto, nestas condições, porque se está a vender gato por lebre.

O que está agora em causa, no entanto, é a política museológica e de colecções públicas a propósito do episódio que conduziu à demissão de David Santos, um profissional credor do maior respeito. Para contar rapidamente a situação: o Estado português foi adquirindo, desde 1976, um conjunto — muito irregular em termos qualitativos —, de obras de arte que estiveram, até à dissolução da antiga Direcção Geral da Acção Cultural no início da década de 1990, à sua guarda no edifício da Avenida da República. O espólio foi sendo reunido, depois do 25 de Abril, através das escolhas de, sobretudo, Fernando Calhau, Fernando Pernes e Fernando de Azevedo, espelhando a diversidade de opções deste grupo. O objectivo não era tanto fazer uma colecção, como apoiar os artistas numa altura em que o mercado de arte estava completamente parado. Repare-se que o Museu do Chiado era uma triste instituição moribunda estando encerrado entre 1988 e 1994, o Centro de Arte Moderna ainda não tinha aberto (só em 1983) e, no Porto, Fernando Pernes tentava constituir o embrião de um museu de arte contemporânea no Soares dos Reis — digamos, a génese do que, noutras condições, viria a ser possível em Serralves. As obras desse espólio foram sendo espalhadas por embaixadas, gabinetes ministeriais, espaços do poder para além das que estavam nas garagens da SEC na Av. Da República. Nunca nos preocupámos com elas quando, de vez em quando, nos aparecem atrás de ministros em entrevistas. Na maior parte dos casos, estão maltratadas — excepto, precisamente, as que estão em depósito em Serralves, ao abrigo do tal compromisso por 30 anos, firmado em 1997, embora acordado desde 1990. Serralves pouco usou as pouco mais de 500 peças que lá tem deste espólio, mas cuidou-as. Destas, mais de 300 são obras em papel, o que implica uma utilização mais limitada, ou condições muito especiais de apresentação e como escreveu recentemente João Fernandes, de alguma forma Serralves condicionou as suas aquisições pela presença deste espólio. O Museu do Chiado também não usou sistematicamente obras deste espólio ao longo dos últimos anos. Há várias razões para isso, sobretudo derivadas da extrema escassez financeira dos recursos do MNAC, sistematicamente combatida pelos sucessivos directores com estratégias várias, mas nunca combatida pelo Estado. O MNAC não tem espaços expositivos suficientes nem espaços de reservas, nem recursos financeiros. Tem, isso sim, uma equipa muito boa, técnica e cientificamente. Enfim, é o caso típico do desperdício português: pessoas muito competentes a esforçarem-se quotidianamente para vencerem a corrida de obstáculos que representa cumprir o desígnio básico da instituição em que trabalham.

Compreende-se que o episódio tristemente caricato da falta de orientação do Secretário de Estado que, primeiro, faz um despacho colocando o tal espólio sob a tutela do MNAC — mas permanecendo em Serralves — depois quer fazer uma exposição desse espólio glorificando a abertura de alguns espaços (com declarações sobre a forma como tinha aumentado em centenas de obras a colecção do MNAC) e finalmente, por razões insondáveis, dá o dito por não dito, contradiz o seu despacho (e lá arranjará uma pirueta jurídica para defender os seus ziguezagues) e quer mudar o texto do director do Museu do Chiado. Que, como compete a quem tem carácter, se demite. Entretanto, abre a propalada extensão do MNAC com uma exposição de algumas obras, em espaços cuja pressa de qualificação não consegue esconder a falta de qualidade expositiva nem está disponível qualquer informação consistente para o visitante. A placa comemorativa da inauguração em plexiglass lá assinala o momento.

Pronto. Isto é a história dos últimos dias, sem as partes sórdidas.

Claro que o que é urgente é pensar estrategicamente o interesse dos espólios existentes:

Vamos tentar algumas perguntas simples que nos possam orientar.

1. A que instituição fará mais sentido estar vinculado este espólio?

Parece que ao Museu Nacional de Arte Contemporânea. Repare-se: é um museu com uma colecção exclusivamente portuguesa para a qual muitas destas peças podem ajudar a completar núcleos. Alguns especialistas reivindicam a oportunidade da inclusão das obras dos anos de 1970 e da década seguinte. Há, no entanto, uma grande dificuldade: onde podem as obras ficar sediadas, independentemente da sua titularidade? É que o MNAC não possui condições para as albergar (e uma colecção não é um conjunto de peças que possam estar permanentemente em exposição) e não se antevê um programa sério, conducente a uma reformulação dos espaços que, na expansão, inclua as necessárias reservas. Assim, há uma longa negociação a efectuar entre Serralves e o MNAC que deverá ser realizada ao nível técnico, com menos declarações de responsáveis políticos e administradores. Não parece, aliás, que a esse nível haja particulares dificuldades, até porque o protocolo de depósito por 30 anos acaba em 2027. Há tempo, portanto, e uma clara necessidade de colaboração institucional.

2. Qual poderá ser o posicionamento estratégico futuro do MNAC?

Esta é uma pergunta de difícil resposta, mas que é essencial ser formulada. Certamente que deverá esperar por um novo director para propor um rumo. O caminho, no entanto, parece estar traçado em termos gerais: trata-se de um museu português, dedicado sobretudo à história dos séculos XIX e XX nacionais, com as particularidades que a sua história legou: representação escassíssima dos mais importantes modernistas — a requerer negociações de depósitos com a Fundação Calouste Gulbenkian —, presença excessiva de tardo-naturalistas, uma zona aberta no campo da fotografia. Os modelos existentes para este tipo de instituições variam entre o modelo da Tate Britain (com um corte nacional) e o K20 de Dusseldorf (com um corte epocal). Agora note-se bem: estes modelos só existem face à Tate Modern e ao K21, isto é, face a outras instituições gémeas, intimamente articuladas, que exploram a contemporaneidade ou o âmbito internacional, mas a esta questão já regressaremos.

3. E isso é possível no nosso contexto?

É. Há núcleos importantes de arte moderna e contemporânea que deveriam ser articulados no sentido da constituição de um Museu de Arte Contemporânea internacional em Lisboa — no mesmo sentido de Serralves no Porto. É necessário, para tal, articular a Colecção Berardo com o espólio da Ellipse, uma fundação que se encontra em liquidação mas que possui uma notável colecção internacional. Atenção: fala-se que a ida à praça desse espólio está eminente e essa seria uma perda inestimável. Portugal nunca poderia constituir outra colecção dessa relevância. Se a estes espólios associarmos o núcleo de obras adquirido para o Instituto de Arte Contemporânea na segunda metade da década de 1990 e que se encontra armazenado no Museu Berardo sem nenhuma decisão quanto à sua titularidade, a a Colecção (maioritariamente portuguesa) da Caixa Geral de Depósitos e outras colecções privadas a requererem exibição pública, como a importante colecção de fotografia do Novo Banco, temos uma grande colecção portuguesa e internacional, base para um Museu de nível europeu que concretiza a ligação entre os séculos XX e XXI. Dir-me-ão: é uma operação muito difícil, reunir estas colecções. Legalmente, economicamente e negocialmente complexo. É verdade, mas esse é um efectivo desígnio nacional. E há lugar para a localização deste Museu Nacional de Arte Contemporânea: o CCB, claro, com possíveis extensões dentro do perímetro de Belém, mas com uma moldura institucional a pensar cuidadosamente.

4. Então em que ficamos? Dois museus nacionais de arte contemporânea em Lisboa?

Não, provavelmente um, com uma direcção bicéfala, o Museu Nacional de Arte Contemporânea/Chiado e o Museu Nacional de Arte Contemporânea/Belém (ou seja onde for). Ou o Museu de Arte Moderna e o Museu de Arte Contemporânea, se houver profundo repensamento dos respectivos acervos e a opção for mais próxima do modelo alemão. Finalmente um museu com uma colecção ampla, muito significativa em termos europeus, com capacidade de ligação internacional e, simultaneamente, premência local, com capacidade de ativar a nossa experiência da arte de hoje, mas também de estimular a investigação. Como os economistas gostam de dizer, é uma possibilidade séria de criação de valor.

E temos Serralves a prová-lo, no melhor exemplo de parceria público-privado que temos em Portugal. Claro que esta estrutura em Lisboa necessita de um continuado empenho e compromisso do Estado em Serralves e nunca cair numa tentação macrocéfala. Até porque Serralves é uma instituição a vários títulos exemplar.

Aqui fica uma hipótese de trabalho e discussão. Não nos esqueçamos, no entanto, onde tudo isto começou. E foi numa trapalhada. Uma triste trapalhada, que cortou o desenvolvimento de um projecto, tudo envolvido em contornos eticamente deploráveis.

Que sirva, ao menos, para pensar o futuro com alguma liberdade e alguma ambição.

Professor Universitário e Curador

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