Ver na escuridão

Um padre mobilizou um bairro para salvar uma igreja e um conjunto de telas do século XVII. Uma história de fé. Aqui não é preciso ver para crer.

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Nunca tinha estado atrás de um altar-mor. Subi as escadinhas seguindo o padre Edgar Clara, contornei alguns obstáculos e, encolhida entre as tábuas de madeira, olhei para cima. Iluminado por uma luz ténue estava um trono dourado. Quem olha para o altar a partir dos bancos da Igreja de São Cristóvão, na Mouraria, não o vê. Desde há um ano ergueu-se em frente dele uma tela. E é a história desta tela, que representa uma Última Ceia, que o padre Edgar agora conta.

Com o telemóvel ilumina o espaço escuro no chão. Há um buraco estreito e, no fundo deste, alguma coisa cuja forma não se consegue decifrar. “São os restos da tela”, diz o padre. Esta é uma daquelas histórias que podia dar um romance. Há fotos antigas, uma tela desaparecida, uma igreja votada quase ao abandono, um padre jovem que chega e começa a investigar, uma tela que se julgava perdida e que regressa à luz do dia, uma população que se mobiliza, uma campanha para restaurar a pintura.

Edgar chegou há cinco anos. A igreja, sobrevivente do terramoto de 1755, tem uma origem que pode remontar ao século XIII — chamava-se então Santa Maria de Alcamim. Destruída por um incêndio e reconstruída, foi no século XVII que recebeu o conjunto de 35 telas do pintor régio Bento Coelho da Silveira. São elas que agora nos rodeiam, enchendo todas as paredes. Mas o tempo e a falta de cuidados ao longo de muitas décadas fez descer sobre estas pinturas um véu de escuridão que nos obriga a adivinhar os rostos e os gestos saídos dos pincéis do pintor.

Faltava, contudo, uma tela. Edgar tinha-a encontrado numa antiga fotografia a preto e branco, na qual se via a estátua de São Cristóvão com o Menino Jesus sentado no ombro (Christophoros significa “aquele que transporta Cristo” e está ligado à lenda de um gigante que atravessa um rio com o Menino aos ombros) e, por trás, uma Última Ceia, ocupando o fundo do altar-mor. Nessa fotografia vêem-se bem os rostos de Jesus e dos apóstolos em redor de uma mesa com uma toalha branca. Hoje, a mesma tela, que Edgar acabaria por encontrar caída no fundo do buraco que o seu telemóvel agora ilumina, é um pedaço de escuridão sobre o altar. A parte da mesa (cerca de um metro de tela) desfez-se e está caída lá em baixo. “Aqui só funciona a fé”, diz o padre. “Um dia ficaremos com uma visão clara do que existe realmente.”

É, portanto, a fé que o leva a lançar uma campanha de recolha de fundos. Numa loja ao lado da porta principal da igreja vendem-se os biscoitos que a Cozinha Popular da Mouraria criou para ajudar esta causa. E também as almofadinhas e outras peças de tecido feitas com a reprodução de uma pintura mural com figuras do bairro — entre as quais, claro, o incansável padre. O crowdfunding ajudará a restaurar a Última Ceia, mas é preciso fazer-ser muito mais para chegar ao milhão de euros que se calcula necessários para recuperar São Cristóvão.

Na loja e na entrada da igreja, empilham-se telhas. Pertencem a outra campanha — “Não fiques com a telha” — em que quem quiser participar doa 20 euros e pode assinar uma das telhas que irão proteger o hoje degradado telhado. Entretanto, e num processo que poderá ser acompanhado por quem visitar a igreja, pode ver-se (a partir de amanhã) o restauro ao vivo de algumas das telas de Bento Coelho da Silveira. E, recuperando a antiga tradição da bênção dos carros (São Cristóvão é o padroeiro dos motoristas), vai realizar-se em Agosto uma muito mais moderna “bênção dos tuks”.

Dentro da igreja, o padre Edgar quer mostrar-nos tudo. Aponta os dois púlpitos, um de cada lado, e em baixo dois confessionários — “o eixo da palavra e da confissão”. Se o nosso olhar atravessar um dos confessionários, encontrará uma pintura do beijo de Judas, a imagem da traição. E do outro lado? O quadro que lá está foi colocado mais tarde e tem até marcas de ter sido cortado, diz. O que poderia lá ter estado originalmente? Pedro a negar Jesus? Talvez nunca se venha a saber.

Toda a igreja está cheia de mistérios com muitos séculos. Há túmulos e pedras com inscrições antigas, algumas ainda por estudar. Há paramentos do século XVII guardados num arcaz. Há um livro — que o padre Edgar tira, com mil cuidados e luvas brancas, de uma prateleira — de registo dos membros da “Irmandade do SS Sacramento da Paroquial Igreja de S. Christovão” com as assinaturas, a fina tinta preta: “Príncipe D. João”, “El Rei”, “Princeza D. Carlota”. E, com data de 24 de Abril de 1908, “El Rei D. Manuel”, poucos meses depois do assassinato (a 1 de Fevereiro de 1908) do seu pai, D. Carlos, e do seu irmão, D. Luís Filipe.

As telas de Bento Coelho da Silveira têm vindo a ser estudadas por Paulo Pinto, investigador da Universidade Católica, que, conta Edgar, identifica uma parte delas como sendo o hino eucarístico de São Tomás de Aquino. O padre aponta para cima. Olhamos, semicerrando os olhos, mas pouco vemos. “Ali há quatro meninos que representam quatro sentidos. Haverá um quinto? Se há, não se consegue reconhecer.”

Mas isso não importa. Porque o que precisamos saber está no próprio hino e na tela escura para a qual olhamos — o que escapa aos sentidos só a fé permite ver, diz São Tomás de Aquino. É assim na Igreja de São Cristóvão. Os olhos falham-nos. E, mesmo assim, vemos.

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