Um acordo que visa provocar uma “viragem tectónica” no Médio Oriente

Como assinala a analista Roula Khalaf no Financial Times, "a América regressa ao Médio Oriente, mas agora pela porta da diplomacia e não da guerra".

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Um acordo de desarmamento nuclear e o desfecho de um interminável processo negocial, com 12 anos de encontros, rupturas e ameaças militares, podem encobrir a outra grande dimensão do acontecimento: a internacional, a previsível normalização das relações entre os Estados Unidos e o Irão ou o seu impacto no Médio Oriente. A prazo, esta dimensão é susceptível de provocar uma “viragem tectónica” na paisagem da região.

Convém uma palavra de prudência. O acordo tem adversários no Irão, nos Estados Unidos, em países árabes como a Arábia Saudita ou em Israel. E terá de ser discutido — mas não ratificado — pelo Congresso americano, onde Barack Obama encontrará enérgicas críticas e muito cepticismo sobre a “seriedade” de Teerão, o que Benjamin Netanyahu tentará explorar. Também os “falcões” iranianos não deixarão de tecer armadilhas ao Presidente Hassan Rohani até à entrada em vigor do acordo.

Mas também é necessária uma palavra sobre o seu carácter excepcional: é uma vitória da diplomacia de Obama. Comenta a analista Roula Khalaf no Financial Times: “Por entre queixas sobre a retirada dos EUA do Médio Oriente, a América procede a um regresso, mesmo se temporário, pela porta da diplomacia e não da guerra.” Será a primeira vez, desde há muito tempo, que a diplomacia leva a melhor sobre as armas numa região devastada pela guerra e pelo terror.

Não se trata apenas de resolver a questão do nuclear iraniano, um dos grandes focos de tensão internacional. Obama e Khamenei têm muito a ganhar. O Presidente americano jogou nesta negociação o seu prestígio e a marca do seu mandato. E faz outro raciocínio: uma cooperação estratégica com o Irão pode mudar a face da região e contribuir para diluir a grande linha de fractura entre os Estados sunitas e xiitas, que dilacera o Médio Oriente. Muitos estrategos americanos pensam que um Irão “normal” ajudará a reequilibrar a região.

Teerão tem também muito a ganhar. Precisa desesperadamente de ver levantadas as sanções, de reconstruir a sua frágil economia e responder às expectativas da população. Ao mesmo tempo reforçaria a sua estatura internacional. Desde o tempo do Xá que Teerão sonha ser a grande potência regional. Mas isso tem um preço: desistir do nuclear militar e passar a ser um factor de estabilidade e não de desordem na região.

E ambos têm muito a perder se o acordo não for cumprido, a começar pelo recrudescimento da tensão entre os EUA e o Irão.

“Game Changer”
Americanos e iranianos têm um inimigo comum imediato que a ambos ameaça: o Estado Islâmico (EI). É um inimigo que já os levou a cooperar. Teerão apoia a aliança anti-EI sem a ela pertencer. Por trás do raciocínio americano há ainda a expectativa de que a normalização das suas relações com o Irão possa funcionar como aquilo a que os americanos chamam um game changer, a introdução de um factor novo que cria uma nova dinâmica.

Além do combate ao EI, o Irão poderá ajudar a pacificar o Iraque, a encontrar uma solução para a guerra síria e para a crise do Iémen. Este projecto implicaria um entendimento entre iranianos e sauditas para “apagar fogos” e estabelecer uma ordem regional mais estável. Os americanos gostariam de ser os mediadores, a “potência indispensável”.

“Idealmente, esta dinâmica poderia acabar por desencadear desenvolvimentos no Golfo e no conjunto do Médio Oriente”, escreve o analista libanês Rami G. Khouri. “No Golfo, o pensamento racional substituiria a exagerada histeria de muitos países árabes que hoje vêem o Irão como uma predatória ameaça xiita. Um Irão que mereça a confiança das potências mundiais — conservando as suas instalações nucleares [para fim civil]— seria visto como alguém com quem se pode negociar e coexistir.”

É o plano ideal: o conflito entre sunitas e xiitas não acabará amanhã. Traduz um confronto estratégico que envolve duas potências principais: Irão e Arábia Saudita, que se lançaram em “guerras por procuração”. Entretanto, o fenómeno EI mostra que os Estados árabes perderam o controlo da barbárie sectária, que ganhou uma dinâmica própria.

O Médio Oriente está em rápida mutação, por muitas razões: há uma quebra da influência árabe decorrente da erosão dos seus Estados e da sua perda de legitimidade política, o que incentiva sangrentos conflitos do Golfo ao Mediterrâneo. O velho mundo árabe, com clivagens políticas e ideológicas bem desenhadas, passou à história.

Uma nova ordem deverá contar não apenas com as potências árabes — como a Arábia Saudita ou o Egipto — mas com os não árabes: o Irão, a Turquia e Israel, que hoje está mais isolado mas continua a ser um actor incontornável.

O “amigo” iraniano
Leslie Gelb, antigo presidente do Council on Foreign Relations, explica que o desígnio do Presidente americano é mais ambicioso. “Segundo fontes da Administração, Obama sempre procurou algo de maior do que o cerceamento do programa nuclear iraniano e conseguiu-o — a oportunidade estratégica de converter o Irão de inimigo em ‘amigo’.”

Durante 60 anos, os pilares das relações americanas na região foram Israel e a Arábia Saudita. O reino saudita é uma monarquia absoluta e fechada que prossegue uma política ambígua perante o radicalismo islamista. Os americanos já não precisam do seu petróleo. O Irão não é uma democracia mas faz eleições e é uma sociedade mais plural e aberta. Fora Israel, é o mais filo-ocidental país do Médio Oriente.

É normal que Khamenei tente utilizar o acordo para consolidar o regime. A democracia não está na ordem do dia. E nada garante que, a prazo, Teerão tenha uma agenda regional compatível com a americana.

Conclusão? O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Javad Zarif, explica que o acordo não é “perfeito” mas que “todos ganham com ele”. Era o que se pretendia. O resto vê-se depois.

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