Na (des)união europeia nada se fez contra a vontade alemã

Mais insustentável que a irresponsabilidade do Governo grego é um domínio alemão que dispense a França.

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Recentemente, um membro ilustre da bancada parlamentar da CDU alemã, citado pela Spiegel, dizia mais ou menos o seguinte (cito de memória): “Da última vez que estive em Atenas pude observar os autocarros luxuosos que servem a cidade, que até têm ar condicionado”. Aqui, o importante não é a diferença climática entre Berlim e Atenas (o ar condicionado), mas a total normalidade com que se referiu à marca dos ditos autocarros: Daimler Benz. Nos últimos cinco anos, os alemães interiorizaram a tal ponto o preconceito em relação aos países do Sul da Europa que nem se dão conta do que dizem. Podia ter acrescentado que a Alemanha beneficiou muito com o crédito fácil nos países do Sul, que foi o país que mais proveito tirou do euro para as suas exportações ou ainda que pode pagar juros negativos pelo seu endividamento. Nada disto esteve presente na maratona negocial de 17 horas, o tempo que foi necessário para encontrar um acordo com Atenas que evitasse a bancarrota e a saída do euro.

Esta é a versão mais generosa do comportamento da Alemanha nesta negociação de vida ou de morte que envolveu durante o fim-de-semana os ministros das Finanças e os líderes dos países da zona euro. O resultado imediato foi, porventura, o melhor possível, dadas as circunstâncias. Como disse o Presidente francês, ficou afastada a ideia de um Grexit. É uma visão optimista que ajuda Hollande a ficar bem na fotografia. A partir de agora, a ideia de fazer sair um país da união monetária deixou de ser tabu e ninguém sabe se isso não pode vir a acontecer no futuro. O Presidente francês teve de ceder muito para conseguir manter um entendimento público com a chanceler. Mas o que fica desta cimeira é uma ferida que não será fácil de curar na relação franco-alemã. Merkel liderou todo o processo mas teve o cuidado de não excluir Hollande. “Os alemães não querem ser vistos a exercer o seu imenso poder sozinhos”, diz Rem Korteweg, do Centre for European Reform de Londres. 

A versão menos generosa deste acordo é aquela que o Wall Street Journal resume num longo parágrafo, escrito um pouco antes do final da cimeira por Marcus Walker. “O comunicado de domingo, divulgado pelo Eurogrupo (…), ficará na história como uma das mais brutais démarches diplomáticas na vida da União Europeia, ela própria uma realização construída para manter a paz na Europa, que está hoje a ameaçar publicamente um dos seus membros com a ruína, a não ser que aceite a rendição”. A imprensa americana não entende completamente o que há de específico na integração europeia, mas tem a vantagem de ver as coisas de longe e escrevê-las como elas são. E o que se passou neste fim-de-semana em Bruxelas “não é nada que não vá deixar marcas profundas para o futuro”, resume António Vitorino. 

O que talvez tenha sido mais preocupante foi a facilidade com que muitos países - da Bélgica à Eslováquia, passando pela Holanda ou pelos Bálticos, pela Finlândia, incluindo Portugal - tenham aceitado a possibilidade de um Grexit como normal. No fundo, apenas a França e a Itália mais os líderes da Comissão e do BCE se bateram até ao fim para excluir qualquer possibilidade de Grexit, actual ou futura. A reunião dos ministros das Finanças, que começou no sábado à tarde, teve de ser interrompida pelo confronto violento entre Wolfgang Schäuble e Mario Draghi, justamente em volta da questão da irreversibilidade da união monetária. Mesmo que não se possa dizer que prevaleceu em toda a linha a vontade alemã, mais uma vez a Alemanha mostrou que nada se faz contra ela hoje, na Europa. 

Capitulação
Quando a maratona negocial começou na sexta-feira, um acordo fácil e rápido parecia ao alcance da mão. Contrariando qualquer previsão, Alexis Tsipras, depois de vencer esmagadoramente um referendo que tirou do bolso sem aviso prévio, entregou em Bruxelas uma proposta praticamente igual àquela que colocou à consideração dos gregos e que lhes pediu para rejeitar. O que aconteceu no fim-de-semana provou que não era assim. Por uma razão fundamental: Wolfgang Schäuble tinha decidido colocar em cima da mesa a possibilidade de um Grexit. Que ele pensava assim, já se sabia. Merkel parecia distante desta posição. A irresponsabilidade de Atenas acabou por levá-la a mudar de atitude. Teve razão quando disse que a moeda mais importante era a confiança, que o comportamento de Atenas tinha delapidado. Podia aceitar a permanência da Grécia no euro mas apenas com condições draconianas, como aquelas que, no fim, Alexis Tsipras teve de subscrever e levar para casa. A imprensa europeia fala em “capitulação” e a palavra não parece exagerada. 

O governo do Syriza convenceu-se de que a Europa acabaria por ceder às suas exigências, porque temia, mais do que tudo, as consequências de um Grexit. Enganou-se rotundamente. A partir do momento em que, do lado alemão, essa possibilidade foi anunciada publicamente e, mais ainda, incluída no comunicado final do Eurogrupo que precedeu a cimeira, o jogo mudou de regras. O primeiro-ministro grego chegou a Bruxelas com uma única ideia na cabeça: não sair dali sem assinar o acordo que lhe pusessem à frente. Não previu, talvez, que fosse tão duro. Não tinha outro remédio sob pena de não ter dinheiro nem nos cofres do Estado nem nos bancos. A meio da noite, o líder do Syriza teve um desabafo revelador. Reagindo ao Fundo de 50 mil milhões de activos do Estado para privatizar, comentou: “Mas eu não tenho nada que se aproxime desse valor”. Vai ter uma vida difícil em Atenas. Ou, então – e esta seria a pior das hipóteses – ainda acha que o acordo não é para cumprir. Como escreveu Mark Gilberg na Bloomberg, “foi a Grécia que piscou primeiro”. O mesmo analista também conclui que, “apesar dos esforços diplomáticos de França na semana passada para ajudar a Grécia a conseguir um acordo, também se tornou evidente que há apenas uma voz que conta na Europa – e essa voz fala de Berlim.” Mais insustentável que a irresponsabilidade do Governo grego é um domínio alemão que dispense a França. Desta vez, Hollande teve alguma coisa para apresentar em casa. Também ele precisa de mostrar aos franceses que pesa junto da chanceler para o bem da Europa, se quer conquistar um segundo mandato no Eliseu. 

Não é a economia, estúpido!
Há, naturalmente, outras leituras do que aconteceu em Bruxelas na madrugada desta segunda-feira, mais favoráveis a Berlim e à sua ortodoxia financeira. Uma das mais interessantes é a de Gideon Rachman na sua coluna do Financial Times. O título torna a leitura compulsiva: “A rendição condicional da Alemanha”. Porquê? Porque vai financiar o terceiro pacote financeiro para Atenas, quando os alemães são esmagadoramente contra isso e quando os dois primeiros [resgates] acabaram por não ter os resultados pretendidos”. No mesmo jornal, outro conhecedor das questões europeias e alemãs, Wolfgang Munchau, escreve exactamente o oposto, aliás de uma forma contundente: “Os brutais credores da Grécia destruíram o projecto do euro”. “O facto de ter sido evitado um Grexit por agora não é relevante”, continua. Para concluir que este ou outro qualquer “xit” voltará inevitavelmente, ao menor incidente. 

O problema é que a Europa não é só economia. A questão é sempre a mesma: a Alemanha ainda precisa da Europa para garantir os seus interesses? Pode dar-se ao luxo de ignorar as questões de segurança? Pode correr o risco de ser vista pelos seus pares europeus como excessivamente hegemónica? Ou, como alertam muitos analistas alemães, continua a viver o drama que a persegue ao longo da sua história: demasiado pequena para o mundo, demasiado grande para a Europa. São muitos “se” que continuam a pairar sobre a Europa. O último episódio deixou marcas profundas.

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