Deus nos livre daqueles que nos querem proteger

Um dos grandes escritores europeus da actualidade, o espanhol Rafael Chirbes, regressa com um romance sobre os estragos morais e os escombros de um mundo e de um tempo que terminaram. Na Margem é o grande romance da crise: não apenas espanhola, mas europeia.

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Rafael Chirbes é um crítico da Espanha actual, falsamente moderna, que é descendente directa dos esquemas mentais do franquismo Rui Gaudêncio

A descoberta de um cadáver num pântano onde durante anos se acumulou toda a espécie de lixo é o começo do mais recente livro do espanhol Rafael Chirbes (n. 1949), Na Margem, considerado o melhor romance de 2013 pelos mais importantes suplementos literários dos jornais espanhóis. “É o meu romance mais amargo”, confessou o autor em conversa com o Ípsilon.

Seis anos antes, Chirbes tinha publicado Crematório (Minotauro, 2009), sobre a corrupção política e a especulação imobiliária no pesadelo urbanístico em que se tornou a costa levantina espanhola. Sem ser a continuação dessa história, Na Margem é o livro dos escombros e dos estragos morais desse tempo (não apenas um tempo espanhol, mas também um tempo europeu): aos 70 anos, Esteban, o protagonista, vê-se obrigado a fechar a carpintaria de que era proprietário deixando no desemprego várias pessoas (que se irão juntar às já muitas que por ali andam a viver de biscates depois de as empresas de construção terem falido), isto enquanto tem de cuidar do pai, um doente terminal nonagenário. Partindo dessas coordenadas, Na Margem será, se quisermos ser redutores, uma espécie de indagação das causas da ruína de que Esteban é ao mesmo tempo carrasco e vítima, num espelho que devolve imagens quebradas, sonhos perdidos e ilusões que não passaram disso. Conta o narrador: “Na rádio discute-se diariamente o rebentar da bolha imobiliária, o descontrolo da dívida pública, o crédito malparado, a quebra da poupança e a necessidade de reduzir as despesas sociais e de levar a cabo uma reforma da lei laboral. É a crise.”

“Eu nunca sei de que falam os meus romances”, afirma Chirbes, que até dar por terminado o livro ignora o desenlace da narrativa que está a escrever, pois não faz planos nem esquemas, tão pouco toma apontamentos. “Acho que se conhecesse o fim não escreveria o romance. E se soubesse o assunto sobre o qual escrever também não. As coisas vão-me saindo, com muito trabalho e como que por acaso: primeiro uma frase, depois um diálogo, uma imagem que chega, um cheiro algures perdido na memória. Invejo todos esses escritores que sabem tudo dos seus romances. Eu continuo a ser um escritor amador, e quando acabo um livro não sei se vou ser capaz de escrever outro.”

Este que agora chegou a Portugal, Na Margem, é o grande romance da crise,. Não apenas da crise espanhola, mas da crise de uma Europa que parece teimar em não arranjar solução para os problemas que ela própria criou; uma espécie de coro de homens e de mulheres, vozes trágicas, que vivem as suas vidas desoladas junto a um pântano para onde parecem ter ido de uma só vez todos os sonhos que ainda lhes restavam. 

A história, quase sem uma intriga que sirva de linha condutora, vai sendo levada ao sabor daquelas vozes a que Rafael Chirbes deitou a mão para nos mostrar as suas diferentes maneiras de olhar para o mundo. A intriga cada vez o interessa menos, confessa. Convoca vozes que acompanham um correr de águas central a todo o romance – e é sempre ele, esse correr de águas, a personagem principal. “Escrevo os romances que me saem. Não os procuro, nem penso sobre o que vou escrever a seguir. Eles acontecem. Esta coisa de que os romances têm de ter uma intriga, um mistério, como se fossem um policial em que temos de descobrir quem é o criminoso, a mim não me diz nada. Na vida também não tenho nenhum crime para resolver, e a grande maioria dos leitores também não. O que me interessa é como o discurso do romance vai acontecendo, como é que ele se vai articulando dentro da história que conto. É essa oposição, esse diálogo entre as diferentes vozes, que faz o caminho da história; essas vozes que, no fundo, acabam por ser as diferentes maneiras de ver o mundo."

Chirbes contra Chirbes
Nesse mundo polifónico, o trabalho do escritor é portanto o de articular (ou no limite, o de ser) essas vozes: "Foi o que Cervantes fez no D. Quixote, porque todas as personagens acabam por ter a sua parte de razão, mesmo os loucos. Eu também sou todas essas vozes dos meus romances. De certa maneira escrevo sempre contra mim mesmo. Os meus livros são de Chirbes contra Chirbes porque eles me obrigam a descobrir-me. A literatura faz-nos corrigir o olhar. Se me coloco do lado daquilo que mais odeio, descubro as minhas próprias contradições. Por isso nos meus livros há ternura e compaixão pelas pessoas. Não gosto de tratar o leitor como um gato a quem passo a mão pelo pêlo. Quando o faço é sempre a contra-pêlo.”

O romance surge como uma espécie de desculpa para as divagações das personagens. Mas essas diferentes vozes têm de ter o mesmo tom, e assim formam uma espécie de coro que conta aquilo que interessa ao autor. “O trabalho com a linguagem é fundamental, há que trabalhar a cadência dessas vozes, a sua respiração, o seu tom, isso é o que faz com que um livro seja diferente de outro.” Na Margem é um romance discursivo, uma narrativa que parece estar sempre a fugir, como a água de um pântano que se infiltra pelo solo argiloso, escondida pela vegetação; uma água que vai para todos os lados e que nós só descobrimos quando pisamos o chão. Mas Chirbes confessa que, apesar da dificuldade em manter a história dentro de certas margens, isso lhe dá ao mesmo tempo mais liberdade de contar, de tocar em vários assuntos, de explorar as vozes, de contar mais. Sem nunca aliviar a tensão narrativa que, segundo ele, deve estar na linguagem e não na intriga. “Se a história tem tendência para fugir permanentemente, como acontece neste romance em que tudo parece divagar pelos arredores, a escrita tem de ter a função de juntar, de tornar una. Para manter a tensão, que é das coisas mais importantes na narrativa.”

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Mas do que trata verdadeiramente este livro? É quase a pergunta que agora se impõe. Rafael Chirbes, que se mostra sempre um pouco avesso a falar dos temas ou dos assuntos dos romances que escreve, diz: “Trata do que há. A matéria é nele totalmente centrífuga, logo a escrita tem de ser centrípeta e por isso capaz de converter todos aqueles elementos numa pasta literária. Daí aparecerem por lá prostitutas, chulos, clientes, mafiosos, gente que faz tráfico humano, trabalhadores e patrões, pederastas, desempregados, alguns corruptos, culinária, emigrantes, o que surge nas notícias.”

No pântano
Num romance de enorme densidade literária e grande carga simbólica, o pântano, que acaba quase por ser o protagonista de Na Margem, funciona ali como uma metáfora do nosso tempo, apesar de na história estarem imbricados o passado e o presente, a guerra e o pós-guerra; os mecanismos de corrupção e de enriquecimento são os mesmos desde há décadas e continuam a funcionar, são essa “coisa espessa e lodosa que pinga e fede” em redor de tudo. Rafael Chirbes é bastante crítico da Espanha actual, que segundo ele é ainda feita da herança dos velhos rojos, dos velhos fascistas, e dos velhos anarquistas, que de repente, com a morte de Franco, tiveram de converter-se ao regime democrático, tornando-se muitos deles nos políticos burgueses corruptos que minaram todo o sistema. “Em Espanha vivemos uma falsa modernidade. Somos muito modernos, mas continuam a funcionar os mesmos esquemas, aqueles esquemas mentais do franquismo, dos anos 1940, ainda com cheiro a sotainas, a velas e a incenso. Os comportamentos têm uma continuidade com os que conheci aos dez anos na minha aldeia. Somos um país puritano, com ares de exigente, que aos poucos se vai convertendo de novo num coro inquisitorial. Isso assusta-me.”

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Para o escritor espanhol, vivem-se tempos estranhos: a situação actual faz com que que todas as revoluções mais ou menos proletárias dos últimos dois séculos pareçam nunca ter chegado a acontecer. As recentes leis laborais, a austeridade com cortes na saúde, na educação e nos apoios sociais, e a transferência desses dinheiros para um sistema bancário corrupto são para ele o perfeito exemplo. “A diferença é que antes se conhecia o inimigo e lutava-se contra ele fazendo barricadas nas ruas; actualmente não conhecemos o sujeito histórico do nosso tempo contra quem lutar. Não sabemos como combater. No século XIX faziam-se trincheiras, mas agora não conseguimos identificar o rosto do inimigo. Estamos a viver uma guerra mundial, e já faz algum tempo.”

As novas leis sobre a liberdade de manifestação e expressão são outro exemplo esclarecedor, prossegue: “Uma mulher de 80 anos que levava dois ferros numa manifestação foi acusada por um polícia de levar armamento, arriscando-se agora a ser condenada a anos de prisão. O mesmo se passa com quem se manifestar diante do Parlamento, é um delito gravíssimo. Mas onde vão as pessoas manifestar-se se não diante da casa daqueles que elas próprias elegeram? Os eleitos que têm medo dos eleitores dão muito que pensar.” Rafael Chirbes refere ainda a crescente intervenção do Estado na vida privada, o controlo sobre todos os aspectos mundanos, e a tipificação de novos crimes, e tudo isto revestido da capa da protecção aos cidadãos. “Criou-se um ambiente de suspeita sobre todos nós. Como com a pornografia, por exemplo, que está permitida na Internet. Mas de repente a polícia pode entrar em nossa casa e isso funciona como agravante de qualquer coisa de que sejamos acusados, não importa o quê. Deus nos livre dos que nos querem proteger.”

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