O que faz o torturador quando chega a casa?

O escritor queniano Ngugi wa Thiong’o e o australiano Richard Flanagan, ambos no palco da Festa Literária Internacional de Paraty, explicaram o que têm em comum

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Richard Flanagan ©Walter Craveiro
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Ngugi wa Thiong’o e Richard Flanagan ©Walter Craveiro
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O romancista, ensaísta e dramaturgo queniano Ngugi wa Thiong’o falou da sua infância ©Walter Craveiro

Durante muito tempo, o escritor Ngugi wa Thiong’o, muitas vezes falado para o Prémio Nobel e que hoje é professor de Literatura Comparada numa Universidade da Califórnia, hesitou em fazer um livro de memórias. Mas, agora aos 77 anos, atreveu-se a fazê-lo porque, como explicou no palco da Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP): “O mundo onde vivi já não existe mais”.

Numa conversa moderada pelo jornalista mexicano do Financial Times, Ángel Gurría-Quintana, e tendo a seu lado o escritor australiano Richard Flanagan, que recebeu o Man Booker Prize 2014 com o romance A Senda Estreita para o Norte Profundo (ed. Relógio d’Água), o romancista, ensaísta e dramaturgo queniano Ngugi wa Thiong’o, autor do romance Um Grão de Trigo (Edições 70), falou da sua infância. Contou que cresceu numa casa com quatro mães e um pai. Viviam em casas diferentes mas todas comunicavam através de um pátio. “Esse espaço no meio era muito importante para nós, crianças, porque íamos para casas das nossas mães ouvir histórias”, contou. Isso só acontecia à noite porque de dia, as mães diziam-lhes que “as histórias fugiam”. E se se comportassem mal, nem à noite podiam ouvir histórias. Disse também que foi a sua terceira mãe, a biológica, que não sabia ler nem escrever, quem o mandou para a escola (antes de ter sido o seu sonho, era o sonho dela).

Pela primeira vez na América Latina, no Brasil e em Paraty, o queniano que defende que os escritores africanos devem regressar às suas línguas nativas para evitar que estas desapareçam, afirmou que é preciso termos consciência da nossa história. “Estamos agora em Paraty e é preciso ter consciência da história de sangue que a criou. A cidade é do século XVII, o que significa que o povo africano foi escravizado aqui, fez parte da força de trabalho que criou Paraty. É interessante imaginar que os homens que tinham escravos provavelmente eram pais e maridos amantíssimos, iam à igreja e pediam perdão. Não consideravam a escravidão um pecado”, afirmou quando o moderador levantou o tema de ambos os autores em palco se terem colocado na mente de algozes nas suas obras.

Ngugi wa Thiong’o, que ainda não leu o romance de Richard Flanagan, que remete à construção da linha de caminho-de-ferro entre Banguecoque e a Birmânia encomendada pelos japoneses para transportarem as suas tropas durante a Segunda Guerra Mundial e realizada com o trabalho escravo dos prisioneiros de guerra, um dos quais era o pai do escritor australiano, deixou a pergunta: “O que faz o torturador quando chega a casa? Na guerra, o que acontece quando você mata uma pessoa e depois volta para casa sabendo que podia ter sido você a ter morrido?” São estas contradições que lhe interessam para a literatura, explicou o escritor que, em 1977, foi preso pelo vice-presidente Daniel Toroitich arap Moi (por causa de uma peça que criticava o Governo) e na prisão escreveu o primeiro romance moderno em kikuyu, a sua língua natal, utilizando o que tinha à mão: pedaços de papel higiénico.

Também para Richard Flanagan, a obscenidade da guerra não é apenas o sofrimento que inflige às pessoas, mas o facto de obrigar pessoas boas a praticarem sofrimento e a terem de lidar com essa culpa. O australiano contou que A Senda Estreita para o Norte Profundo não era um livro que quisesse escrever. “Apareceu como uma pedra dentro de mim”. E se não o tivesse terminado – demorou doze anos a fazê-lo - está convencido de que nunca mais conseguiria escrever alguma coisa.  

Explicou que as pessoas que vivem um grande trauma, sobrevivem graças à capacidade de esquecerem. O mesmo acontece nas sociedades: a períodos traumáticos seguem-se períodos de grande esquecimento necessários para que as pessoas possam continuar a viver. “Mas, como a liberdade também existe no espaço das memórias, é preciso às vezes voltar para a escuridão: para transcender o horror e reencontrar a luz”, afirmou.

Quando estava a escrever este romance, Richard Flanagan foi ao Japão procurar os guardas da prisão do seu pai. Encontrou um, a que o pai se referia sempre com violência, e que tinha por alcunha The Lizard. “Este homem tentou responder às minhas perguntas o melhor que podia mas dizia-me que não se lembrava que alguma violência tivesse sido cometida”, contou o escritor.

“Ao fim de uma hora daquilo, por razões que ainda hoje não compreendo, pedi-lhe que me batesse. Esta era a primeira forma de punição nos campos, chamavam-lhe ‘binta’. Ele achou que era um pedido bizarro, mas ficou de pé, tenso como um atleta, fechou as mãos, e o corpo dele naquele momento lembrou-se do que a mente preferia não recordar”.

Ao terceiro golpe que recebeu daquele velho senhor japonês, Richard Flanagan começou a sentir que o tecto estava todo a balançar para cima e para baixo e achou que estava a ficar louco. “O que na realidade aconteceu numa daquelas bizarras coincidências”, a que os escritores nunca se atreveriam por medo de parecerem irrealistas, “é que um terramoto de 7,3 na escala de Ritcher aconteceu em Tóquio. Então olhei para aquele homem e vi que o mal não estava nele, nem naquela sala, e tive de repensar tudo.”

Quando mais tarde regressou a casa contou ao pai, que na altura tinha 98 anos, que se tinha encontrado com os guardas japoneses. Disse-lhe que eles pediram desculpa e que tinham genuína vergonha do que tinham feito.

“O meu pai ainda estava lúcido e tinha uma memória muito boa, mas, no final daquele dia, perdeu toda a memória da época dos campos. Lembrava-se do que se passara antes e do que se passara depois. Foi, como disse a minha irmã, como se finalmente se tivesse libertado daquela experiência".
 

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