Um ano depois: o que conhecem os portugueses do testamento vital?

O Registo Nacional do Testamento Vital entrou em vigor há um ano e um estudo realizado pela Universidade Católica Portuguesa concluiu que 78% da população ainda não sabe o que é um testamento vital. Para o presidente da Associação Portuguesa de Bioética "não é um número desconfortável".

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O Registo Nacional do Testamento Vital entrou em vigor há um ano Nuno Ferreira Santos

Há dois anos, Manuel Monteiro esteve envolvido num acidente rodoviário. Com 65 anos, entrou em coma e não voltou a acordar. Incapaz de tomar decisões por si, foi Alzira, a esposa, quem determinou não o manter agarrado às máquinas. Com essa decisão, veio outra: “Não quero que os meus filhos passem pelo que eu passei”, conta Alzira.

Alzira Monteiro tem 64 anos e é uma das 1454 pessoas que, segundo os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, se inscreveu no Registo Nacional do Testamento Vital (Rentev), disponível desde dia 1 de Julho de 2014. Manuel e Alzira nunca tinham falado sobre o que desejavam caso acontecesse algo que os incapacitasse. “Ainda hoje me pergunto, seria isto que ele queria?”, explica Alzira e conclui: “Se algum dia ficar numa posição em que só as máquinas me agarram à vida, quero poder dizer que não as quero”. Por isso optou pelo preenchimento de um testamento vital. O documento salvaguarda a vontade do cidadão que decide quais os cuidados de saúde que pretende ou não receber se, por alguma razão, se encontrar incapaz de o expressar de forma autónoma.

Embora Alzira saiba o que é um testamento vital, 78% dos portugueses ainda não sabe. Um estudo realizado pela Universidade Católica Portuguesa em parceria com a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) inquiriu pouco mais de 1000 cidadãos maiores de idade e concluiu que dos 22% de inquiridos que sabiam o que é um testamento vital, apenas 50,4% sabiam a quem recorrer e como o fazer e só 1,4% já realizaram, efectivamente, o testamento. Embora já seja possível fazer um testamento vital desde 2002, até 2014 implicava redigir um documento próprio, validado juridicamente, com estrutura livre, por vezes não respondendo a todas as perguntas.

No ano passado foi criado o Rentev, um sistema informático com o intuito de registar todos os testamentos vitais e permitir que os médicos tenham acesso à vontade dos doentes em situações extremas. Para Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, um em cada dez portugueses saber o que é um testamento vital “não é um número desconfortável, pode parecer escasso, mas há quatro ou cinco anos era quase zero”, acrescentando que “a este ritmo, daqui a dez ou doze anos a população está cabalmente informada”.

O estudo realizado pela Universidade Católica Portuguesa permitiu ainda concluir quais os níveis de conhecimento da população sobre o testamento vital com base na região, grau de instrução e rendimentos económicos. Foi possível apurar que as pessoas mais informadas são as que residem na zona de Lisboa (32,9%), as que completaram o ensino superior (48,8%) e as que têm rendimentos mais altos (60,5%).

À semelhança de 66,2% das pessoas inquiridas que sabiam o que era um testamento vital, Alzira obteve esse conhecimento através da televisão. Apesar de já ser um direito assegurado, Rui Nunes alerta “há uma longa trajectória para que o direito do exercício do testamento vital seja uma realidade, uma coisa é a lei consagrada, outra é as pessoas saberem que têm o direito a exercê-la”. Para que isso se consiga, considera que há um longo caminho para percorrer e que “todos os agentes sociais” são responsáveis pela divulgação deste direito: “Em primeira mão, os profissionais de saúde têm de se envolver esclarecendo os utentes, por isso também estou a preparar a proposta de alteração da lei que implica o acompanhamento do médico enquanto o paciente preenche o testamento vital, para que lhes expliquem a linguagem”. Mas só isso não chega. Para além da divulgação por parte dos profissionais de saúde, a responsabilidade deve ser “partilhada por muitos braços”, pela comunicação social, mas também pelos professores, ainda que a longo prazo “para que quando os jovens de hoje forem adultos amanhã, sejam adultos informados”, conclui. Para além disso, em declarações à Lusa, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética declarou ainda que não vê “razão nenhuma para que maiores de 16 anos de idade, eventualmente com o consentimento parental, para termos a certeza de que há capacidade de decisão, não possam, se for o caso, elaborar um testamento vital”.

Rui Nunes considera que os números vão aumentar e os médicos de família têm de ser parte integrante disso. “É um sinal extraordinariamente positivo que os médicos cada vez mais tenham uma posição favorável, de algum modo haverá maior preocupação em explicar aos seus doentes o que é um testamento vital”, acrescenta. Ainda assim, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética alerta para necessidade de clarificação da população, “este tipo de discussão contamina outras”. “Este debate vai gerar outros debates como é o caso da sedação paliativa do paciente terminal e da eutanásia”, mas realça necessidade de perceber que são coisas diferentes. Uma população envelhecida, com mais quadros demenciais, mais casos terminais de cancro, “obrigam a uma discussão sobre o fim de vida em geral”, explica, mas no fundo “são debates que se cruzam no mesmo eixo condutor: como respeitamos a vontade e a dignidade de cada pessoa”, afirma.

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