Médicos que fazem abortos “já perguntam às mulheres se querem ver o ecrã”

Proposta de lei apresentada por movimento de cidadãos, que vai ser debatida na próxima semana no Parlamento, defende que a grávida que quer abortar terá de ver o exame ecográfico e assiná-lo.

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Em 2014, o número de abortos por opção da mulher foi o mais baixo desde a despenalização, em 2007. Nelson Garrido

“Sempre que fazemos uma ecografia obstétrica a uma mulher [que vai fazer Interrupção Voluntária da Gravidez] perguntamos sempre se quer ver o ecrã. A utente tem o direito e a opção de ter o resultado do exame que está a realizar. A maior parte não quer ver”, diz a presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Contracepção, Teresa Bombas, comentando a proposta de lei do movimento de cidadãos Direito a Nascer, que vai a debate no Parlamento dia 3 de Julho, de tornar obrigatória a assinatura da grávida no exame ecográfico impresso. O bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, considera que, cerca de sete anos depois da lei, esta é uma boa altura para “avaliar o resultado da sua aplicação".

A obrigatoriedade de mostrar à grávida que vai abortar uma ecografia que terá de assinar, o fim da isenção das taxas moderadoras para as mulheres que fazem Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) e o não afastamento dos médicos e enfermeiros objectores de consciência do processo de realização do aborto são as três principais propostas de alteração à lei do aborto que vão ser debatidas no Parlamento, como resultado de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos que conseguiu reuniu cerca de 50 mil assinaturas.

Em 2007 foi, por referendo, despenalizado em Portugal o aborto feito até às dez semanas a pedido da grávida, em estabelecimento de saúde autorizado. De acordo com este movimento de cidadãos, “tal despenalização levou à liberalização e promoção do aborto”. A Comissão de Subscritores da Iniciativa Legislativa de Cidadãos Pelo Direito a Nascer escreveu, em comunicado enviado esta quinta-feira às redacções, que o agendamento por parte da Assembleia da República da discussão em plenário e votação na generalidade do projecto-lei "é uma vitória para as mulheres e famílias portuguesas que têm assim uma oportunidade de ver as suas reivindicações respeitadas pelo Parlamento.”

Bastonário concorda
O bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, considera que, cerca de sete anos depois da lei, esta é uma boa altura para “avaliar o resultado da sua aplicação e o Parlamento é o sítio para o fazer” e, nesse sentido, “esta petição faz sentido”. O bastonário considera que, “infelizmente, parece que algumas mulheres entendem a IVG como método contraceptivo. E não é esse o espírito nem a letra da lei”.

Na sua opinião, “não há razão para equiparar a IVG a uma doença ou à maternidade”, isentando estas mulheres do pagamento de taxas moderadoras e dando-lhes direitos "iguais a mulheres que tiveram uma gravidez de termo". O bastonário concorda que “o objector de consciência não deve ser afastado do acompanhamento e aconselhamento da mulher”. A Ordem dos Médicos abriu há alguns anos um registo voluntário de médicos objectores de consciência à IVG: em 2011 eram cerca de 1300, mas esse número nunca mais foi actualizado, informa.

“Quem apresenta estas propostas está longe de saber como é o funcionamento real das consultas de IVG”, refere Teresa Bombas, que faz acompanhamento médico nesta área na Maternidade Daniel de Matos, em Coimbra. O movimento entende que a grávida só pode assinar, em consciência, o consentimento informado da IVG se lhe for mostrada a ecografia, sendo depois obrigada a assiná-la.

Teresa Bombas diz que “é prática comum nas consultas de IVG perguntar à mulher se quer ver o ecrã”. “Não está na lei mas é o procedimento médico mais adequado e é feito em todos os serviços que fazem IVG. A utente tem direito a ter o resultado do exame que estão a realizar." A médica diz que "a resposta das senhoras é variável: a maior parte prefere não ver, mas para alguma delas é importante, do ponto de vista psicológico, ver o ecrã”. Mas, diz a médica, “a utente tem o direito a isso, é uma opção, devemos questionar se quer ver ou não, não obrigar”. “As mulheres que tomam a decisão não têm de ser confrontadas com isso.”

Vítor Neto, obstetra objector de consciência que trabalhou até há três anos no Hospital São Francisco de Xavier, em Lisboa, diz que “uma mulher, para tomar uma decisão destas, tem de estar informada”, e mostrar-lhe obrigatoriamente a ecografia “não é uma tentativa de dissuasão, mas de dar-lhe a informação total, completa e absoluta”. “Não se pode não dar todas as informações à mulher que queira tomar uma decisão destas”, diz.

Outras alterações
Quanto às taxas moderadoras, Vítor Neto diz que se “estas mulheres não querem estar grávidas, então devem ser tratadas de forma igual às pessoas que não estão grávidas. É uma injustiça”.

Na proposta de lei que a Plataforma pelo Direito a Nascer gostava de ver aprovada, propõe-se que se deixe de “equiparar o aborto à maternidade”, que dizem decorrer do facto de estas mulheres terem direito à isenção de taxas moderadoras, tal como acontece com as grávidas, pondo assim fim “ao aborto universalmente gratuito, financiado e subsidiado pelo Estado”.

Teresa Bombas diz que essa “é uma questão política” mas, "sendo a medicação que se usa nas IVG muito barata", teme que, com a introdução de taxas moderadoras, “possa haver o risco de voltar a haver abortos não seguros realizados fora do Sistema Nacional de Saúde”.

Por fim, a proposta de lei defende “a dignificação do objector de consciência”. “Não é concebível que um profissional de saúde (médico /enfermeiro) que faz a opção pela objecção de consciência à IVG, perante casos concretos de pacientes que sempre acompanhou, e que agora estão em risco de aborto, acabe imperativamente afastado daquelas. A classe médica e de enfermagem merecem mais respeito. O médico sabe até onde vai a sua consciência e a liberdade da paciente que está à sua frente", lê-se na proposta de diploma.

Teresa Bombas refere que “a não participação dos médicos objectores de consciência no processo das IVG é voluntária. Estes médicos estão afastados por opção deles. São os colegas que pedem para estar afastados e o sistema e os serviços respeitam esta vontade".

O presidente do colégio de especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, Silva Carvalho, prefere não se pronunciar sobre esta questão, por representar “médicos com as mais variadas sensibilidades”. Não havendo números concretos, considera que, dos cerca de 1600 ginecologistas que exercem em Portugal, mais de 80% são objectores de consciência.

Na consulta prévia à IVG, o movimento quer também que a grávida seja informada sobre “as condições de apoio que o Estado e as IPSS podem dar à prossecução da gravidez e à maternidade”.

Aborto a descer
Em 2014 foram feitas menos 1692 interrupções de gravidez do que em 2013. No ano passado, realizaram-se 16.589 abortos por todos os motivos, 97% dos quais por opção da mulher. Este é o número mais baixo de que há registo desde que o aborto foi despenalizado em Portugal.

O perfil das mulheres que decidem interromper a gravidez é heterogéneo, mas não se tem alterado de forma significativa em cada ano que passa. Em 2014, por idades, mais uma vez foram as mulheres entre os 20 e os 24 anos as que mais abortos fizeram, seguidas das mulheres entre os 25 e os 29 anos e entre os 30 e os 34 anos, enquanto se continua a verificar uma tendência decrescente nas jovens (com menos de 20 anos). Tendo em conta o grau de instrução, mais de um terço tinha o ensino secundário, enquanto cerca de um quinto possuía cursos superiores. Mais de metade tinha um a dois filhos e 41,1% não tinham filhos.

Olhando para os dados sobre a reincidência, percebe-se que perto de três quartos das mulheres (71,1%) nunca tinha abortado, mais de um quinto tinha feito uma interrupção de gravidez, 5,1%, duas, e 1,9% reconhecia ter realizado três ou mais abortos ao longo da sua idade fértil. Os registos da DGS permitem também concluir que, em 2014, 303 mulheres (1,9%) já tinham realizado um aborto nesse ano.

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