Como convencer os indianos a usar a sanita

Modi anunciou uma revolução nos hábitos sanitários da Índia, mas além de construir casas-de-banho tem de mudar a cultura. Os indianos não gostam de defecar dentro de casinhas com portas. Preferem o ar livre. "A brisa fresca" é melhor.

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Para as mulheres o simples acto de ir à casa de banho torna-se um problema e um risco Ahmad Masood/reuters

Primeiro os números: 70% dos 1,2 mil milhões de indianos vivem no espaço rural e, aqui, 53% dos agregados familiares não têm sanitas. Há, portanto, uma enorme percentagem de população que defeca ao ar livre, e há anos que os governos indianos tentam mudar este costume ancestral que mata centenas de milhares de pessoas por ano.

Recentemente, o jornal de referência Hindustan Times publicou um artigo chamado "As 15 doenças que a Índia pode combater se tiver sanitários melhores". A cólera e a diarreia estão no topo da tabela. Só estas doenças matam por ano 100 mil crianças com menos de 11 anos. A diarreia é mesmo a maior causa de mortalidade entre os zero e os cinco anos — os números são da agência para a infância das Nações Unidas, a UNICEF.

Mas há mais doenças: a cólera, a febre tifóide, a hepatite... todas as doenças causadas por vírus, bactérias, parasitas e vermes que existem nas fezes e que entram em contacto com as pessoas através do solo e da água e dos alimentos manipulados por pessoas contaminadas.

Entre 2013 e 2014, o Governo (então nas mãos do Partido do Congresso), construíu 4,9 milhões de sanitários, sobretudo na Índia rural. O nacionalista hindu Narendra Modi, que é primeiro-ministro desde Maio de 2014, subiu a fasquia e prometeu construir num ano 5,8 milhões.

Em Outubro de 2014, Modi lançou a campanha Swachh Bharat (Índia Limpa). Porém, como outros antes dele, descobriu que construir sanitários nas aldeias não significa que os habitantes os usem.

"Nós não pedimos isto", disse Rameshwar Natholi ao jornalista de The Washington Post que visitou a sua aldeia, Mukhrai (no Uttar Pradesh, Norte da Índia), para ver como estava a população rural a receber a inciativa do Governo de Nova Deli.

Em Mukhrai, o sanitário, uma pequena casinha de cimento com uma porta de metal, foi erguido mesmo em frente à porta da sua casa. Está instalada no meio do quintal. Mas não é só por isso que Natholi, de 22 anos, está zangado. "A fossa é muito pequena. Vai ficar cheia muito depressa e eu não quero ter de a limpar". O Post não explica se, a par dos sanitários, foram feitos esgotos; as palavras de Natholi indicam que não. E o Hindustan Times dizia que, a acrescentar à defecação ao ar livre, na maior parte das áreas rurais indianas há águas estagnadas e não há esgotos.

Ao lado de Natholi, o seu pai faz um gesto com a cabeça, para dizer que concorda. "Ter um sanitário tão perto da casa não é boa ideia. Ir lá fora, fazer ao ar livre, é mais saudável. A brisa fresca é mais saudável do que uma casinha pequenina", diz esta família. A fossa que o governo construíu nunca foi usada.

Os relatórios que os departamentos governamentais têm feito e enviado para Nova Deli mostram que esta desconfiança é transversal a toda a Índia, e que a maior parte dos novos sanitários são usados como espaço de armazenamento pelas famílias das aldeias.

"Muitas pessoas consideram que defecar ao ar livre faz parte de um todo, faz parte de ter uma vida saudável e virtuosa", explica um estudo do Research Institute for Compassionate Economics (RICE) realizado em Bihar, Haryana, Madhya Pradesh, Rajastão e Uttar Pradesh — segundo o censo de 2011, só estes estados do Norte constituem 45% da zona habitacional nacional onde não existem casas de banho/sanitários; estima-se que uma média de 600 milhões de pessoas defequem ao ar livre todos os dias.

Os investigadores de Nova Deli sublinham que a prática "não é reconhecida no mundo rural a Norte como uma ameaça à saúde". Os investigadores concluem que não basta construir sanitários, sublinham que há um trabalho mais vasto de informação e educação que tem obrigatoriamente que acompanhar programas como o Swachh Bharat, caso contrário a iniciativa fracassará.

"Mesmo que se acelere a construção de sanitários, é preciso fazer muito mais para persuadir as pessoas a usá-los", reconheceu publicamente Chaudhary Birender Singh, o ministro indiano do Desenvolvimento Rural. "Durante muito tempo, assumimos que se construíssemos os sanitários as pessoas os usariam, de forma automática. Temos de vigiar, de forma diligente, o seu uso durante um período de tempo e recompensar com dinheiro os conselhos das aldeias que cumpram. Só dessa forma [usar o sanitário] se tornará um hábito diário", disse o ministro.

Nos discursos em que abordou a questão, Narendra Modi tentou sensibilizar as populações recorrendo não à saúde pública mas aos riscos que defecar ao ar livre representam para um grupo em concreto: as mulheres.

Num país onde a subalternização da mulher é um costume igualmente ancestral, sobretudo nas zonas rurais, o simples acto de ir à casa de banho torna-se um problema e um risco. As mulheres, relatam os jornais indianos e estudos como o do RICE, esperam pela noite para fazerem as necessidades fisiológicas. Além dos riscos para a saúde que essa espera significa — infecções do aparelho urinário e stress, por terem que esperar — , ficam vulneráveis a ataques. No ano passado, duas adolescentes que saíram de casa para irem "à casa de banho" à noite foram brutalmente violadas e assassinadas em Badaun, no Uttar Pradesh. Foram encontradas na manhã seguinte enforcadas numa árvore.

"As pobres mulheres das aldeias esperam pela noite, esperam que a escuridão desça, para poderem defecar. Não devemos fazer o que pudermos para que existam sanitários que dêem dignidade às nossas mães e irmãs?", perguntou Modi no discurso do Dia da República da Índia, a 26 de Janeiro. Prometeu ter uma rede de sanitários construída até 2019, quando o país celebra o 150.º aniversário do nascimento de Gandhi, que será celebrado no Dia da Independência, a15 de Agosto.

Para alguns analistas e investigadores, Modi está a perder esta batalha, apesar de ter dado passos positivos. Deu prioridade à construção de sanitários nas escolas, incentivando o seu uso pelos mais jovens. "Dentro de um ano, quando voltarmos a falar aqui, todas as escolas terão um sanitário para raparigas e outro para rapazes", disse em Janeiro. E envolveu as empresas privadas, a quem pediu que insistam com os seus funcionários para a importância socio-económica desta mudança de hábitos e pedindo-lhes que patrocinem a construção de instalações sanitárias nas zonas onde estão implantadas.

O estudo do RICE avaliou 3235 agregados familiares em estados do Norte e verificou que 43% já tinham sanitário. Porém, em 40% pelo menos um membro da família recusava-se a usá-lo. Quando os investigadores perguntaram "porquê?", 75% dos inquiridos disseram que, ao ar livre, é mais "agradável", "confortável" e "conveniente".

"Eu gastaria pelo menos metade do dinheiro investido na construção dos sanitários em campanhas de informação", defendeu noutro jornal de referência, o Times of India, Santosh Mehrotra, professor de economia na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Deli. "A estratégica de informar e educar é o coração do programa de sanitarização e a única coisa que pode fazer alguma diferença no terreno", disse.

Dos mais de 30 mil milhões de dólares atribuídos à construção de sanitários, só 8% foram canalizados para a campanha de sensibilização. E já foram cometidos erros, alguns perigosos, dizem os especialistas. O Governo contratou celebridades de Bollywood para aparecerem em filmes e posteres a incentivar o uso dos sanitários, mas sem que sejam dadas explicações sobre os riscos de não o fazer — a mensagem é "se esta pessoa famosa o diz, devemos fazê-lo". Outros anúncios centram-se apenas na importância de as mulheres usarem os sanitários, o que passou a ideia, errada, de que estes se destinam exclusivamente a elas, não sendo coisa de homem.

Sangita Vyas, um dos autores do estudo do RICE, diz que em momento algum foi sublinhada e divulgada a mensagem de que defecar ao ar livre faz mal à saúde porque propaga doenças e tem efeitos devastadores na economia — para começar nas economias das aldeias, uma vez que as colheittas são afectadas, os alimentos ficam contaminados, as pessoas morrem. Defende campanhas tão agressivas como as que se fazem sobre os perigos do tabaco.

Vyas é contra a ideia de se pagar às aldeias para terem casas de banho. Diz que está provado que as comunidades recebem o dinheiro mas não mudam os hábitos. Defende que tem de haver uma campanha porta-a-porta, como aconteceu no Bangladesh — onde defecar ao ar livre também era uma tradição ancestral difícil de quebrar — onde, em 2000, foi iniciado um programa de educação directa. Funcionários dos departamentos de saúde começaram a correr as comunidades explicando em pormenor aos cidadãos o que acontece quando se defeca ao ar livre. As pessoas entenderam as consequências do seu comportamento e, se em 2000 eram 19% os que defecavam ao ar livre, em 2012 já eram apenas 3%. Neste país que, como a Índia, tem uma rede de esgotos muito deficitária (inexistente em muitas zonas, sobretudo rurais), a campanha já está mais avançada e centra-se agora em explicar às pessoas que não podem permitir que o conteúdo das fossas seja levado pelas águas da chuva, devendo ser enterrado.

Na Índia, onde o sistema de castas foi abolido mas continua enraízado, a limpeza das sanitários constitui outro problema. As castas inferiores eram, no passado, obrigadas a limpar os dejectos das castas superiores. "O acto de limpar uma latrina está associado ao sistema de castas", explicou ao Washington Post Sangita Ayas, outro investigador do RICE. "As pessoas receiam que a sanita fique tão cheia que ninguém a limpe devido ao estigma social. E isto desencoraja o uso de sanitas".

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