Uber deverá continuar activa, tudo por causa de uma morada

Na providência cautelar da ANTRAL, a empresa contestada é a Uber nos EUA, mas a representação portuguesa responde à Uber BV, com sede na Holanda.

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Sergio Perez/Reuters

A decisão do Tribunal da Comarca de Lisboa que determinou a suspensão do site e da actividade da Uber em Portugal foi conhecida há quase um mês e meio. Até agora, a decisão traduziu-se no bloqueio da página da empresa. Apenas isso. O que pode explicar a inaplicabilidade da decisão judicial é a empresa identificada na providência cautelar apresentada pela Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) contra a Uber. A empresa contestada é a Uber Technologies Inc, a empresa mãe que funciona nos Estados Unidos, e não a Uber BV, com sede na Holanda, à qual responde a representação portuguesa. A ANTRAL diz que essa é uma “falsa questão”. “Só existe uma Uber no mundo”, diz o seu presidente.

A Uber disponibiliza através da sua aplicação móvel uma ligação a um serviço privado de transporte alternativo aos táxis fornecido através de parcerias com empresas de rent-a-car ou turísticas. Em Portugal, a app permite o acesso aos serviços UberX (o chamado serviço low-cost) e UberBlack (com motoristas ao volante de carros todo de gama), o primeiro disponível no Porto, e ambos em Lisboa.

No seguimento da sentença favorável à ANTRAL tornada pública pela associação em Abril, o site da Uber encontra-se bloqueado e o Banco de Portugal informou as entidades bancárias da decisão do tribunal, com base no que este determinou – a “notificação de todos os operadores bancários e entidades pagadoras, por meios electrónicos, registados em Portugal” para que “suspendam todas as operações de registo e de pagamento, mediante cartão de pagamento ou, outro meio similar usado habitualmente pela Uber”. A cumprir-se esta ordem, a empresa deixa de conseguir operar no país, já que os pagamentos dos serviços de transporte ficam interditos. Para já, apenas um utilizador da app Uber que peça o serviço nos Estados Unidos estará impedido de efectuar o seu pagamento através de uma instituição bancária com presença em Portugal.

Cerca de uma semana depois da notificação do Banco de Portugal, a Uber continua a operar em Lisboa e no Porto, sem quaisquer interferências, quer de acesso à aplicação móvel quer ao pagamento, como confirmou ao PÚBLICO a representação portuguesa da empresa.

Em causa não deverão estar atrasos processuais mas a empresa identificada pela ANTRAL na sua providência cautelar - a empresa-mãe nos Estados Unidos e não a sede da representação europeia, a funcionar em Amesterdão. Este factor foi apontado pelo responsável da Uber em Portugal, Rui Bento, num post publicado no blogue da empresa em Maio, no qual sublinhou que o âmbito da notificação judicial “não abrange a operação da plataforma da Uber em Portugal”. 

O presidente da ANTRAL, Florência de Almeida, nega que tenha existido qualquer erro por parte da associação quando apresentou a Uber Technologies Inc como requerido no processo. “Só existe uma Uber no mundo, mais nenhuma. Só existe uma plataforma Uber e é isso que está em discussão”, defendeu ao PÚBLICO. Florêncio de Almeida considera que a sentença favorável à sua providência foi uma “machadada” na actividade da Uber, que de “futuro tem que entender que a Europa não é a América”. “[A Uber] não tem legitimidade para trabalhar na Europa. Não me parece que vá existir qualquer enquadramento legal para que possa operar em Portugal”, continuou.

Fragilidades legais
Jorge Morais Carvalho, advogado e professor de Direito Privado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e na Universidade Autónoma de Lisboa, escreveu recentemente sobre o caso da Uber em Portugal num artigo publicado na revista EuCML - Journal of European Consumer and Market Law. Ao PÚBLICO, considerou que sendo a Uber BV a empresa que exerce actividade em Portugal “a providência cautelar que teve como destinatária a empresa americana, à partida, não a vincula”.

Este argumento subscrito pela Uber é, no entanto, contestado pelo advogado, que o considera como “possivelmente abusivo”. “Será porventura contrário à boa-fé o comportamento da Uber - contra quem a acção foi claramente proposta - quando invoca questões ligadas à estrutura organizacional da empresa para não cumprir a decisão do tribunal”, indicou.

Jorge Morais Carvalho apontou ao PÚBLICO as dúvidas legais que envolvem a operação da Uber no país. Uma delas o facto de aplicação alegar que "não presta serviços de transporte" e "não é uma empresa de transporte". “Cabe ao fornecedor de transporte oferecer serviços de transporte, os quais podem ser solicitados através do uso da aplicação e/ou serviço. A Uber actua somente como intermediária entre você e o fornecedor de transporte”, indica a empresa nos seus Termos e Condições. A Uber sublinha ainda que o único contrato que existe é entre o fornecedor do serviço de transporte e o cliente e que a empresa “nunca será uma parte nesse contrato”.

O professor de Direito Privado observa, no entanto, que “se isto pode ser verdade do ponto de vista formal, na substância é a Uber - e apenas a Uber - que aparece aos consumidores no momento em que estes acedem à aplicação e contratam o serviço de transporte”. O especialista reforça que para a maioria dos consumidores é a “Uber que presta o serviço, pelo que esta tem de se responsabilizar, em todos os aspectos, pelo serviço prestado”. “A vantagem do bom serviço prestado pela Uber está exactamente na circunstância de ter criado um sistema - controlado por si - de transporte de passageiros”.

Outra das fragilidades encontradas pelo advogado na defesa jurídica da Uber é o argumento de que as empresas que prestam o serviço de transporte actuam no mercado do transporte privado e não do público. “Julgo que este argumento também não colhe. A aplicação está disponível para o público em geral, pode ser consultada em qualquer momento e o transporte é contratado no momento para prestação do serviço de imediato. Temos presentes, portanto, todos os elementos do transporte em táxi”. Nesse sentido, o professor indica que “deveriam ser cumpridas as regras da actividade de transporte em táxi, pelo que, não o sendo, estão a ser violadas as regras de acesso e exercício da actividade”.

Para o advogado, a complexidade do processo ANTRAL vs Uber torna-se, no entanto, mais simples se, neste ponto, as empresas de transporte estiverem autorizadas a prestar esses serviços de transporte de táxi. A estar legalizado o serviço, “não existe qualquer problema, podendo ser utilizada a aplicação”. “A actuação da Uber será lícita se os serviços de transporte forem efectivamente prestados por pessoas e em carros habilitados para o transporte em táxi”, conclui.

Segundo a Uber, estas exigências são cumpridas pelas empresas de transporte com quem tem parceria, nomeadamente a posse de licenças que permitem o transporte comercial de pessoas com motorista privado. Porém, a sentença que deu razão à providência cautelar da ANTRAL concluiu que “os motoristas e veículos cadastrados pela Uber para esse transporte de passageiros não possuem licença para o efeito, nem são portadores da carta de condução averbada com o grupo 2, nem efectuaram formação, com aprovação em exame”.

O tribunal concluiu ainda que a Uber desempenha uma “prática de concorrência ilegal, dificilmente controlável” e que constitui “esta prática um sério risco para o público em geral”. Jorge Morais Carvalho explica que existe concorrência desleal por parte da Uber, “na medida em que o não cumprimento das regras de acesso e exercício da actividade implica uma redução de custos para a Uber, que permite, por sua vez, uma redução dos custos do serviço para o cliente, tornando a oferta mais atraente do que a dos táxis também pela via do preço”.

Neste momento, a Uber aguarda uma decisão judicial à contestação que apresentou à providência cautelar da ANTRAL. Ambas as partes deverão ser ouvidas pelo tribunal nas próximas semanas. Até lá, a representação portuguesa da empresa norte-americana recusa fazer mais comentários ao processo.

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