No arquivo da RTP, de Sócrates e Jorge Jesus ao 25 de Abril num terabyte

No Dia Internacional dos Arquivos, a RTP abriu o cofre da história da televisão e da rádio. “O Telejornal é igual em todos os canais, mas o nosso arquivo é o que nos diferencia."

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Mara Carvalho

Videogravadores, bobines e tapes de dados, gira-discos e leitores digitais, horas de imagens e terabytes de histórias. “Esse lugar estranho que é o passado”, como descreve o responsável pelo arquivo radiofónico da RTP, Eduardo Leite, a conviver nos arquivos da estação pública de rádio e televisão com o menor peso e a maior capacidade do futuro - os três terabytes das novas tapes de dados têm a informação de mais de cem cassetes, por exemplo.

O arquivo da RTP, que agrega 80 anos de rádio e 58 de televisão, abriu-se esta terça-feira ao público para mostrar filas e filas de caixas em salas climatizadas, discos de vinil ou, como resumiu um dos seus responsáveis, Hugo Aragão, um acervo que “conta muito mais do que uma história de uma televisão – conta a história de um país”. Ao final da tarde, há sessão na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema (com a qual a RTP tem um protocolo com 11 anos de depósito do seu património fílmico que ainda está apenas parcialmente cumprido por questões orçamentais) para ver Oliveira, o Arquitecto, de Paulo Rocha.

A primeira sala que visitamos é a do Arquivo Permanente e do Depósito do Arquivo de Televisão. Estão 18 graus para acondicionar cassetes, bobines e tapes. A temperatura devia ser mais baixa mas com a elevada rotação das imagens que ali moram o choque com a temperatura exterior podia danificá-las irremediavelmente. São filas e filas de estantes cinzentas com manivelas para as manusear, cheias de caixas com cota – LX para Lisboa, ano a seguir, SX para formato digital, XD para analógico.

Lá dentro, está a informação e o entretenimento em 250 mil suportes com 150 mil horas de conteúdos únicos desde a fundação da televisão (1957). Surgem as primeiras perguntas. Formatos técnicos, serviço público, números. Há arquivistas, antigos funcionários da RTP, um cabo da GNR na reforma, estudantes e curiosos entre as cerca de 90 pessoas que responderam ao convite da RTP e que foram divididas em grupos para circular pelos espaços mais ou menos exíguos das entranhas da empresa pública.

Desvendam-se segredos do trabalho em informação e pesquisa. “Matamos as pessoas antes de elas morrerem. Eu já tinha morto o Manoel de Oliveira há dez anos”, confessa Hugo Aragão sobre a necessidade de recolha e compilação das imagens históricas, “as mais raras”, para que no momento da notícia “o maior número de conteúdos esteja disponível”.

A rádio e a televisão públicas e as suas delegações portuguesas e nos países de língua oficial portuguesa são os principais “clientes” do arquivo, pedindo desde uma fachada para “pintar” uma peça para a televisão até imagens históricas. De um piso subterrâneo de um dos edifícios do complexo da RTP na zona dos Olivais passamos para uma zona mais povoada, a Produção e os Pedidos Externos, onde se processa um pedido da SIC de imagens da assinatura do tratado de adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia – são os outros canais portugueses os segundos clientes mais frequentes do arquivo da RTP. As imagens têm só 30 anos, mas em 1985 o país tinha só um canal. “O Telejornal é igual em todos os canais, mas o nosso arquivo é o que nos diferencia dos outros”, diz Olinda Manolito, responsável daquela área, aos visitantes.

Noutra sala escura, Clarisse Santos mostra-nos o registo da RTP da inauguração da Feira do Livro do Porto há exactamente 55 anos com e sem grão. No Restauro Digital, com os dedos e os botões na mesa faz-se magia. Retira as marcas do tempo sem “alterar cor, sons, conteúdos ou montagem”. Foi ali, diz, que se tratou todo o arquivo que devolveu aos portugueses imagens da Guerra Colonial, usadas por Joaquim Furtado na série A Guerra (2007-13). Vemos também Fialho Gouveia a apresentar os elementos da Junta de Salvação Nacional ou Mário Viegas a declamar Outra Coisa de Mario Cesariny. E passamos à próxima sala e departamento, que os arquivos da RTP são um mundo com parte do mundo lá dentro – a primeira imagem do arquivo, diz-nos Hugo Aragão, é mesmo a comemoração do Dia Nacional da Mongólia e data de 29 de Agosto de 1956.

Discos e imagens pedidas

Os greatest hits dos arquivos da rádio e da televisão públicas são os expectáveis na sua posição especial de repositório único de largas décadas do século XX português: além do que está na actualidade – José Sócrates ou Jorge Jesus são as imagens requisitadas da semana, diz Hugo Aragão - os mais pedidos são os símbolos de uma certa portugalidade. “25 de Abril, Eusébio, Amália, Herman” José, enumera.

Na rádio, Eduardo Leite não tem dúvidas quanto aos “grandes conjuntos” que estão entre os mais desejados do arquivo sonoro. “Estado Novo, teatro radiofónico, música portuguesa, reportagens, vozes de personalidades e o 25 de Abril”, a revolução que muito “se passou na rádio” e que são sons que gosta de ouvir, admite – “as senhas, os comunicados do MFA”. Nem tudo está à vista, mas desde a fundação da rádio (1935) ali ficaram cerca de 15 mil discos de 78 rotações, 112 mil vinis (25 mil dos quais portugueses), 55 mil CD e muitos outros tipos de suporte que testemunham a evolução técnica do sector, a corrida constante contra a obsolescência e a garantia de que há registos que resistam à extinção de um qualquer formato.

No arquivo RTP trabalham cerca de 50 funcionários com um orçamento que o presidente da RTP, Gonçalo Reis, de quem depende directamente aquele sector, não precisou. Sobre receitas, fala ao PÚBLICO em “pequenas centenas de milhares de euros”, oriundas sobretudo dos pedidos de outros canais, descrevendo-as como “não significativas”. Mas esse, diz, não é o objectivo. “Não dou orientação nenhuma no sentido de rentabilizar e monetizar – a lógica é inversa, é de tratar, digitalizar, disponibilizar, mais abertos e mais presentes na programação”, diz Gonçalo Reis, que quer “desfazer alguns mitos sobre os arquivos da RTP”. Como os da sua inacessibilidade, dando exemplos de que, para particulares, ter acesso a um minuto de programação custa um euro, de estatísticas internas, sobre “90% de pedidos com resposta em 24 horas”. Mas também há os das perdas – que não são mitos.

Na estação que registou sem concorrência 35 anos de Portugal (a primeira estação privada, a SIC, nasce em 1992) já se perderam imagens e sons históricos. Talvez um símbolo dessa perda seja, no entretenimento, a limpeza feita nos anos 1980 que faz com que, admite Hugo Aragão, a RTP não tenha o histórico programa Zip-Zip (de 1969, em plena Primavera Marcelista) na íntegra.

“Falta de dinheiro e de consciência”, resume sobre as causas para tais perdas. E há motivos históricos e técnicos. Muitas das emissões da rádio não eram gravadas e no início “tudo o que é emitido perde-se no éter”, conta Eduardo Leite aos cerca de 25 elementos de um dos grupos na visita, e por isso, detalha ao PÚBLICO, entre as décadas de 1930 e 70 “há muita coisa incompleta”. Não havia, no fundo, consciência da importância do arquivo enquanto património para o futuro.

“Hoje em dia já não se corre esse risco”, garante Hugo Aragão. “A grande maioria dos nossos arquivos históricos já estão mesmo em suporte digital”, diz por seu turno Gonçalo Reis. “A probabilidade ou a hipótese de os arquivos históricos estarem em degradação realmente já não é um tema”, reitera o presidente da estação. 

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