Não desesperemos da democracia turca

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Na noite das eleições, o analista Özer Sencar, especialista de sondagens, anunciou enfaticamente: “A era de Erdogan está a caminho do fim.” Venceu a Turquia. Os derrotados são o Presidente, Tayyip Erdogan, e o seu projecto hiperpresidencialista. É inverosímil que tal sonho — agora pesadelo — possa ser ressuscitado contra quase 60% do eleitorado. Ele transformou as eleições num plebiscito sobre a sua própria pessoa.

Prometera que o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) elegeria 400 deputados: ficou pelos 258. Pela primeira vez abaixo da maioria absoluta. É um resultado tão mais notável quanto obtido num clima de intimidação e com uma altíssima afluência às urnas: 87% do eleitorado.

Outros factores terão pesado: a situação económica, a impopular política síria de Ancara ou a desilusão dos curdos que antes votavam PKK. Mas o “plebiscito” não incidia sobre nada disso: era sobre o poder de Erdogan.

Teria sido útil ao Presidente escutar as palavras de Kemal Karpat, o grande historiador da Turquia contemporânea: “A atitude ‘eu tenho apoio popular, o povo escolheu-me, logo sou livre de fazer tudo o que quiser’ fracassará. Afectaria a imagem da Turquia no mundo. Há um retrocesso no Estado. Não pode durar. A Turquia já não é o país que era dantes. Não pode ser. Por outras palavras, construir a nova Turquia exige uma nova abordagem democrática, uma nova forma de administrar e a abertura de novos horizontes.”

O problema AKP
Abre-se um período de incerteza. São prováveis eleições em Outubro — já não para “referendar” o presidencialismo mas simplesmente para dar um governo à Turquia.

Antes das eleições, Özer Sencar frisara que “o AKP completou a sua vida sociológica”. Queria dizer que tinha entrado em erosão e perdia capacidade de atracção. “O AKP foi identificado com Erdogan, a imagem de Erdogan está desgastada e a do AKP também.”

Esta afirmação deve ser matizada. Com 41% dos votos, o AKP permanece, de longe, o maior partido. Continua enraizado nas massas conservadoras da Anatólia e na “burguesia piedosa” das grandes metrópoles. A maioria dos turcos não esquece a “fantástica década” de prosperidade e democratização que o AKP conduziu. Não apenas pela prosperidade, mas, inclusive, pela conquista de dignidade. O fiasco de Erdogan enfraquece certamente o AKP. O que está em jogo não será tanto a proeminência do AKP, mas a sua hegemonia.

Há muitos motivos de curiosidade em relação aos próximos tempos. Que lições tirará o AKP do desastre provocado pela ambição de Erdogan e pela acumulação de erros de estratégia, como o seu agressivo envolvimento pessoal nas legislativas? Há notícias de mal-estar no partido, que alienou muitos dos mais úteis aliados. Sabe-se, entretanto, que a geração fundadora está a ser substituída por uma “corte” de incondicionais de Erdogan.

Os últimos meses foram marcados por uma “caça às bruxas”, pela depuração da polícia e da magistratura, pelo amordaçamento da imprensa. Que se vai passar após a desautorização de Erdogan pelos eleitores? Vai render-se à realidade? Alguém o vê mudar? Tem desrespeitado a separação dos poderes e exercido o cargo como “presidente executivo”, violando a Constituição. A futura conduta de Erdogan envolve um alto risco de turbulência.

Outro ponto diz respeito aos curdos. A tentativa de transformação do Partido Democrático do Povo (HDP) de “partido curdo” em “partido turco” e o abandono das “políticas étnicas” marcam uma viragem histórica. Se se consolidar, mudará o quadro político nacional. O HDP revelou também grande capacidade táctica, ao captar a evolução das preocupações do eleitorado turco (e não apenas dos curdos) — e os eleitores corresponderam.

“Preciosa solidão”
E na frente internacional? Ancara teve uma política visionária e de ponte entre Ocidente e Oriente. Exerceu um papel estabilizador na região e procurou ser um modelo para o mundo árabe, mostrando que o islão e a democracia secular são compatíveis. Hoje está isolada, sem estratégia, agindo aos solavancos. O Governo chegou a falar em “preciosa solidão”.

As “primaveras árabes” foram a sua perdição. Erdogan enganou-se em quase tudo, da Síria ao Egipto. Apostou na Irmandade Muçulmana e perdeu. Jogou no islamismo sunita, mas foi humilhado quando Riad apoiou o golpe militar no Cairo. A Turquia alienou os aliados ocidentais, o que a desvaloriza na região.

Declarou na véspera das eleições o antigo diplomata turco Umit Pamir: “Se as ambições presidenciais de Erdogan sobreviverem a estas eleições, a sua influência sobre a política externa continuará. (...) Se o AKP perder apoio ou acabar a fazer uma coligação, então olhará mais cautelosamente os passos a dar.” A Turquia, pela sua vital situação geopolítica, não se pode dar ao luxo de uma política errática.

Enfim, 87% dos eleitores foram votar. Uma lição para os europeus. Não desesperemos da Turquia.   

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