Os intocáveis de Zurique

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O futebol é um assunto sério. Conquistou o mundo até ao mais austero mosteiro tibetano, onde os jogos das ligas europeias e os Mundiais são seguidos apaixonadamente. Um geopolítico francês, Pascal Boniface, definiu-o como “estado supremo da globalização”.

O futebol globalizado presta-se a exercícios curiosos. É um domínio que escapa à supremacia americana. Um atlas francês representa a Europa no centro do “planeta futebol”, os EUA no centro do “planeta potência” e a Ásia a caminho do centro do “planeta finança”. A América do Sul é o “pulmão”, a África uma “periferia integrada”, a Ásia, a Oceania e a América do Norte seriam as “margens”. Na Europa estão os clubes ricos que drenam os talentos dos “pulmões” e “periferias” e que são a base dos milhões que o futebol movimenta.

As “margens” não descuram os Mundiais de futebol como vitrina da sua riqueza e ascensão: Coreia do Sul-Japão, África do Sul e, em 2022, o Qatar. A ambição deste pequeno emirado é desmesurada e a sua influência internacional incomparável com a sua dimensão. O Mundial é-lhe vital para projectar a sua imagem de modernidade.

O escândalo FIFA
O Qatar não olhou a meios para alcançar o seu desígnio. Estalou o escândalo, o “Qatargate”. Mas raros são os Estados que não recorrem a todas as armas para vencer. O que caiu mal foi a escolha de um país sem qualquer tradição no futebol e com verões em que a temperatura atinge os 50 graus. O escândalo não está no Qatar. Está em quem — e como — o elegeu.

A operação contra responsáveis da FIFA suscita três perguntas. Será Sepp Blatter reeleito nesta sexta-feira? Resistirá a organização de Zurique — “a corrupta autoridade do futebol mundial” — a uma operação de limpeza como aquela a que foi submetido o Comité Olímpico Internacional? Vai ser confirmado o Mundial do Qatar? O primeiro e o terceiro ponto terão provavelmente respostas positivas. Mas será muito difícil que, mais tarde ou mais cedo, a FIFA escape a uma operação de limpeza.

O problema de fundo da FIFA não são os casos de corrupção. É o seu sistema de poder. “É um mundo à parte, em que negócios e poder são partilhados por membros de uma casta supranacional, com lógicas estranhas às regras que governam a normal actividade económica e política das grandes empresas mundiais”, sintetiza o diário italiano La Repubblica. É uma megaempresa que actua no negócio do futebol e funciona em circuito fechado, não prestando contas a nenhuma autoridade nacional ou internacional. Goza de absoluta autonomia. A casta dirigente é “intocável”.

A cúpula da FIFA tem um método simples de se perpetuar no poder. Com alguns milhões de dólares assegura os votos das federações dos países pobres. Esta forma de comprar votos não é um expediente, é o próprio coração do “sistema FIFA”.

Este não nasceu com Blatter, secretário-geral de 1991 a 1998 e presidente desde então. O seu antecessor, o brasileiro João Havelange, presidente de 1974 a 1998, foi forçado a demitir-se de presidente honorário em 2013, acusado de corrupção.

“Sepp Blatter é um génio”, ironiza Simon Kuper no Financial Times. Tem uma aguda noção da geopolítica. Joga com as rivalidades das potências ou regiões e controla uma inesgotável reserva de votos. Se a Europa é o centro do “planeta futebol”, isso pouco incomoda Blatter. Uma coisa é estar no centro, outra ter o poder.

Roger Pielke, especialista americano em Ambiente, resume assim a moral da história: “Se não pudermos reformar a FIFA, meu deus, como poderemos lidar com a proliferação nuclear, com as emissões de carbono ou com o comércio [mundial]?”

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