Hospital de Santa Maria investigado por “cunhas” e suspeitas de corrupção

Ex-director clínico do hospital que fez denúncias de alegadas ilegalidades em Fevereiro diz que ainda não foi ouvido pela Inspecção das Actividades em Saúde nem pelo Tribunal de Contas.

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O Centro Hospitalar Lisboa Norte, onde se inclui o Hospital Santa Maria, recebe a maior fatia do financiamento Daniel Rocha (arquivo)

O Hospital de Santa Maria (Lisboa), um dos três maiores do país, foi quarta-feira abalado pela divulgação de um estudo que conclui que esta unidade onde trabalham cerca de 6400 pessoas estará sob a influência de “uma teia de lealdades a partidos políticos, a lojas maçónicas e a organizações católicas” e onde serão comuns actos de pequena corrupção, como "trocas de favores".

A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriu um processo de averiguações e a organização católica Opus Dei apressou-se a desmentir tal conclusão, sublinhando que não foi sequer contactada pelos investigadores. O Centro Hospitalar de Lisboa Norte (a que pertence o Hospital de Santa Maria) recusou-se a comentar “um estudo que desconhece”.

A averiguação da IGAS vai ser integrada numa investigação que a inspecção já tem em curso e que foi aberta a pedido do ministro da Saúde, na sequência de denúncias de alegadas ilegalidades feitas pelo anterior director clínico do hospital, Miguel Oliveira e Silva. “Não estou surpreendido com as conclusões deste estudo”, diz ao PÚBLICO o médico que em 13 de Fevereiro abandonou o cargo, depois de ter denunciado, junto do Conselho de Administração do hospital, que havia material para doenças cardiovasculares, como próteses, e material ortopédico que estaria a ser adquirido “sem caderno de encargos”.

Miguel Oliveira e Silva afirma que, além disso, entregou em mãos à IGAS e ao Tribunal de Contas um dossier sobre “as obras da consulta de cardiologia que deveriam ter acabado em Agosto” e se foram prolongando no tempo, ultrapassando em muito o orçamento inicial. “Até hoje, porém, ainda ninguém me ouviu”, lamenta  o médico, que foi presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e permaneceu poucos meses no cargo de director clínico.

Oliveira e Silva recorda ainda que foram os directores de vários serviços, nomeadamente de cirurgia vascular e cardiotorácica, que pediram a realização de um inquérito à administração do hospital por causa do material que estaria a ser comprado sem caderno de encargos. “A informação do departamento de compras foi a de que não havia caderno de encargos e até hoje não foi desmentida”, sublinha.

As conclusões do estudo que esta quinta-feira vai ser apresentado em Lisboa são de natureza diversa. O Hospital de Santa Maria é uma das seis instituições avaliadas no estudo “Valores, qualidade institucional e desenvolvimento em Portugal” que é patrocinado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. As outras organizações são a EDP, os CTT, a Euronext Lisboa (Bolsa de Valores), a Autoridade Tributária e a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) e a classificação foi efectuada considerando factores internos (grau de meritocracia, imunidade à corrupção e “ilhas de poder”)  e externos (proactividade, abertura tecnológica e aliados).

Foi justamente nas três primeiros que o Santa Maria recebeu nota negativa. Os investigadores (da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Princeton) frisam no relatório que a situação mais “problemática” que encontraram foi a deste hospital, onde a “meritocracia” estará mais “comprometida” por uma combinação de factores. 

Na parte referente ao Santa Maria - e que é da responsabilidade da socióloga Sónia Pires - afirma-se que neste hospital são “prática comum” actos de pequena corrupção como a “troca de favores”. Exemplos? Fazer “passar à frente nas listas de espera amigos e familiares” ou um médico "canalizar doentes que têm que fazer análises para laboratórios privados dos quais é sócio”. São afirmações atribuídas a dirigentes e funcionários do hospital que responderam a um inquérito online em 2013 . No total foram 231 os que quiseram dar o seu testemunho. A taxa de resposta aos aos inquéritos enviados aos cerca de 6400 funcionários foi de 3,6%, pelo que as conclusões deverão ser lidas com cautela.  O facto é que nenhum dos inquiridos disse acreditar na ausência de corrupção no hospital, segundo os investigadores.

A imagem do hospital sai assim muito chamuscada no retrato traçado nesta análise, em que se afirma que os interesses públicos e e privados de "grupos poderosos", nomeadamente na classe médica e nas direcções de serviços, chegam a condicionar o funcionamento da unidade. À TSF, Sónia Pires sublinhou, porém, que se passa no Santa Maria não é um caso isolado e deverá verificar-se também noutros hospitais do país.

Além disso, os investigadores sublinham que a situação era pior há uma década, quando “estava fora de controlo”. Não havia, por exemplo, “registos de utilização do equipamento” e verificavam-se “roubos regulares, por parte de médicos e de outro pessoal, que se serviam a seu bel-prazer dos armazéns do hospital para fornecer as suas clínicas privadas".

 As condições deterioraram-se ao ponto de chegar a ser equacionado o encerramento do hospital. “Só a enérgica intervenção do ministro da Saúde, que nomeou um novo conselho de administração e um novo administrador carismático salvou” a instituição, lê-se no documento. O administrador e a sua família receberam mesmo repetidas ameaças de morte e tiveram que ter segurança durante algum tempo .Referem-se ao médico Adalberto Campos Fernandes, que foi presidente do conselho de admnistração do Santa Maria até 2009 e que, contactado pelo PÚBLICO, se recusou a fazer qualquer tipo de comentário.

A partir de 2005, "as condições melhoraram", apesar de continuarem a ser "prática comum" os referidos  “actos menores de corrupção”, como a troca de favores, referem ainda os investigadores. Apesar das melhorias, sustentam, actualmente a unidade "continua atravessada por fortes conflitos de interesse” e casos que,  “nas zonas cinzentas ou silenciadas”, se podem configurar “como corrupção".

Mas a análise incide igualmente sobre outros problemas que o Santa Maria enfrentou e ainda enfrenta, devido aos cortes orçamentais “brutais” verificados nos últimos anos. O hospital lisboeta foi "abandonado à sua sorte" e está suborçamentado para fazer face aos elevados custos que tem, por ser um hospital de fim de linha e receber os doentes mais graves. Ao mesmo tempo, as relações com os seus aliados naturais, como os ministérios da Saúde e  o das Finanças, deterioraram-se nos últimos anos, num período de sucessivos cortes financeiros, e passaram a ser  "de confronto". Hoje, o hospital é uma “instituição órfã”, concluem os investigadores.

Os cortes afectaram também a renovação tecnológica, mas o Santa Maria continuou a investir na modernização. Entre 2009 e 2011, no meio da crise económica, investiu 27,2 milhões de euros em obras, 29 milhões de euros em equipamento médico e nove milhões de euros em equipamento informático, elencam.

A organização Opus Dei reagiu às acusações em comunicado, sublinhando que Sónia Pires não contactou com a sua "prelatura" para realizar este trabalho e pediu à investigadora que, "caso tenha proferido as palavras que lhe são atribuídas, retire a sua afirmação”. A organização pediu ainda às autoridades competentes que realizem uma investigação sobre as “suspeitas levantadas”. com Lusa

Notícia actualizada para corrigir número de inquéritos a que responderam funcionários do Hospital de Santa Maria 

 

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