Entre o céu e o inferno

Com O Luto de Elias Gro, João Tordo muda o sentido da sua escrita: a intriga passa a ser secundária num romance íntimo sobre a mortalidade

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João Tordo concretiza a sua anunciada ruptura com os romances anteriores: na organização e no tratamento da linguagem Miguel Manso

O enredo do oitavo romance de João Tordo (Lisboa, 1975) resume-se de forma muito simples. Um homem chega a uma ilha para esquecer um amor e nessa fuga encontra um padre místico chamado Elias Gro. Encontra também Cecilia, uma rapariga de 11 anos que sabe de cor o nome de todos os ossos do corpo humano e é perita em anatomia; Norbert, um velho louco que se passeia de noite; Alma, uma mulher generosa que vive silenciosa o seu desgosto; e o fantasma de um escritor, Lars Drosler, que deixou todo o seu legado na casa onde vivia e que foi muitos anos depois da sua morte inundada pelo mar. Nem a ilha nem o homem têm nome. “Basta que saibam que, dos vinte e dois aos quarenta anos, construí, na cidade, uma carreira de algum prestígio num determinada profissão e que, a partir dos quarenta, abandonei a cidade e a carreira e fui viver para uma ilha ao largo de uma península, extensão de um continente que não era o meu.” Este “eu” é o narrador e a ilha a paisagem onde o autor coloca aquele que é o seu livro menos ambicioso do ponto de vista da intriga, mas onde ensaia uma escrita que foge aos padrões do que foi até agora o seu universo criativo. 

Tordo estreou-se no romance em 2004, com O Livro dos Homens Sem Luz. Em 2009, com o terceiro livro, As Três Vidas, venceu o Prémio José Saramago. O seu mais recente romance, Biografia Involuntária dos Amantes (2014), confirmava o que os anteriores já anunciavam: um autor que dominava a técnica de bem contar uma história na tradição anglossaxónica das escolas de escrita criativa, ou seja, com intriga, personagens e diálogos bem trabalhados e um desenlace capaz de surpreender o leitor. Perante uma produção regular entre conto e romance — sete em dez anos —, ficava uma interrogação acerca da sua capacidade de se reinventar num livro anunciado para o início de 2015 e que o autor apresentava como “diferente”. Basta ler o arranque de O Luto de Elias Gro para perceber essa mudança de rumo que se consolida ao longo das mais de 300 páginas. O verdadeiro suspense aqui já não está na resolução de um enigma, mas no labirinto de emoções, crenças, sonhos e pesadelos de personagens bizarras que lhe servem para discorrer sobre a morte, o medo, a doença, a angústia, a religião, a mitologia e o sofrimento enquanto potência de vida numa teia que obedece a um único princípio: seguir um homem — com letra minúscula ou maiúscula — em dor. 

O narrador chega à ilha para fazer o seu luto e, no seu isolamento auto-imposto, no “inferno circular” da sua cabeça, apercebe-se de que uma ilha é um território apetecível a quem lida com a perda. Cínico, mordaz, agnóstico, depara-se com gente para quem Deus salva — como Elias Gro ou Alma — e outros, como o fantasma do escritor Lars Drosler, que rejeitam a ideia de Deus “até ao final dos seus dias”. Mas todos lhe devolvem uma imagem, como um espelho: a da solidão a que estão condenados no momento em que sofrem a perda. “A solidão do mar pode esmagar as pessoas, remeter os mais loquazes ao silêncio.” A única pessoa que parece capaz de quebrar essa vertigem auto-destrutiva é Cecília, filha de Elias, anjo da guarda e espírito de contradição do narrador. “Confesso-vos que, às vezes, aquela miúda me mexia com os nervos. Nela eu via a insolência de Elias Gro: o repto constante, o gosto pelo choque.” Cecilia joga um papel decisivo. Além de antagonista à altura do desespero e do cepticismo do narrador, é a partir dela que todas as personagens adquirem uma identidade. Cecilia ouve e interpela, faz agir. Tal como o narrador se revê nos que procuram a ilha como lugar de luto, o leitor pode achar em Cecília a sua própria voz, o seu meio de, através de uma personagem, provocar o narrador. É um jogo a vários níveis, com o tal leitor a ser, por sua vez, lembrado da sua condição através de um narrador que também o interpela, que lhe lembra que é ele o destinatário de uma narrativa construída para indagar acerca da mortalidade, conjugando para isso o racional e a fantasia, sem que a fronteira entre um e outra seja visível. 

Racional e fantástico misturam-se no espaço do sonho ou do pesadelo, convocando um auxiliar de estilo, uma espécie de livro-guia que tanto serve o autor como o narrador: a História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. O homem que chega à ilha para escapar a A. — nome inspirado em Ariadna, que com o seu fio ajudou Teseu a encontrar a saída do labirinto — encontra esse volume de contos no dia em que chega ao farol, um lugar onde há muito não morava ninguém. “Agora eu morava ali, naquele túnel circular plantado no limiar de uma escarpa; seria ali, enregelado e mergulhado na penumbra, a quilómetros da alma mais próxima, que lidaria com o passado.” Passa a ler uma página do livro por dia numa existência de sono, whisky e o papel de peão da loucura de Elias Gro, que tenta resgatar da água a casa onde viveu Lars Drosler e tudo o que ele deixou, sobretudo um baú cheio de folhas escritas. 

Cruzando imaginação com uma escrita intimista, a de alguém que acede aos cantos mais sombrios da mente, João Tordo consegue a tal ruptura com os seus romances anteriores. Borges terá sido uma inspiração, mas nota-se também uma proximidade com uma tendência contemporânea de aproximar a escrita do modo mais ou menos delirante ou mais ou menos livre como pensamento e emoção se organizam na mente, tendo a memória como elemento mediador. Outra inovação é o modo como o autor trata a linguagem, mais cuidada, a adensar o sentimento de tragédia que atravessa o romance. Ela não surge apenas ao serviço de uma narrativa eficaz: é estruturante. 

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