O futuro (assombrado pelo passado) de Patti Smith

No NOS Primavera Sound, Patti Smith voltará ao início de tudo. Ou melhor, voltará ao álbum, o seu primeiro, que foi o corolário da sua visão de futuro da poesia. Juntou rock'n'roll às palavras e nasceu Horses. Será interpretado na íntegra dia 5, sexta-feira, ainda que ela chegue logo na abertura para se transformar na figura desta edição. Haverá outras, como veremos nas páginas que se seguem.

Fotogaleria
Horses é um disco sempre renovado. O rock nunca morreu, mas precisa continuamente de ser salvo. É isso que nos dizem este álbum e os fantasmas que o povoam DR
Fotogaleria
A solo no Palco Pitchfork no dia em que abre mais um NOS Primavera Sound, com banda no Palco NOS no segundo dia, Patti Smith é uma das mais icónicas figuras deste festival DR
Fotogaleria
No Outono, dia 6 Outubro, Patti Smith dará sequência à celebrada Just Kids, a biografia da sua vida com Robert Mappletorpe DR

“Patti Smith começou como poeta, depois virou-se para a pintura, e, de repente, emergiu como uma estrela rock. O que foi estranho, porque não acho que conseguisse ir muito longe, quer na sua poesia ou na sua escrita, partindo do zero. Mas, num ápice, era uma estrela rock. Não havia qualquer dúvida quanto a isso." As palavras são de William Burroughs, citado em Please Kill Me, a história oral do punk, fixada em 1997 por Legs McNeil e Gillian McCain.

Vista por quem estivesse fora da incubadora que era a comunidade artística nova-iorquina da década de 1970, Patti Smith surgiu realmente de rompante, avassaladora e transformadora, fazendo a poesia beat avançar décadas, moldando-a à sua sensibilidade e ao desejo de salvar o rock’n’roll (que, por sua vez, a salvara a ela, operária adolescente numa Nova Jérsia deprimida). Michael Stipe recordou em tempos o impacto que teve a primeira audição de Gloria, versão definitiva da canção dos Them que abre Horses, o álbum que, em 1975, transformou Patti Smith, num ápice, em estrela rock. “Arrancou-me os membros e colocou-os no lugar numa configuração completamente diferente”, ilustrou o vocalista dos R.E.M. “Missão cumprida”, terá pensado Patti Smith. Era afinal ela que ouvíamos exclamar “nós criámo-lo, vamos assumir o controlo” no final da tumultuosa versão de My generation, hino dos The Who que encerrava os seus concertos em 1976. Sim, foi no rock’n’roll que encontrou a chave para as palavras que lhe inundavam os cadernos, para as imagens que lhe povoavam a imaginação, para o seu desejo de futuro decisivamente assombrado pelo passado, pelos que tombaram.

Da lendária frase inicial ("Jesus died for somebody’s sins, but not mine”) à capa icónica fotografada por Robert Mapplethorpe, pose andrógina, casaco atirado sobre o ombro como Sinatra, Horses foi o seu manifesto. Mas, ao contrário do afirmado por Burroughs, não nasceu como erupção espontânea. Foi o corolário de um percurso iniciado anos antes, nas sombras bem frequentadas do Chelsea Hotel onde vivia com Mapplethorpe (e por onde passavam Jimi Hendrix, Janis Joplin, Bob Dylan, Nico e tantos outros) ou na comunidade muito activa de poetas e artistas onde coexistiam Allen Ginsberg, Andy Warhol ou o supracitado Burroughs. É isso, provavelmente, que o tornou um álbum tão poderoso para quem com ele se deparou em 1975. E é também por isso, por ser álbum maturado nos seus objectivos mas criado com uma urgência irrepetível – John Cale, o produtor, limitou-se a registar a banda como esta se apresentava então ao vivo , que sobreviveu tão magnificamente à passagem do tempo. “Ela pertenceu a um tempo, mas não pertenceu a um movimento. Existia um pouco à margem”, contextualizou com argúcia o jornalista musical Richard Williams ao Guardian, em Abril deste ano, antecipando os 40 anos de Horses. “Ninguém me esperava. Toda a gente me aguardava." Estas são palavras mais antigas. Pertencem à própria Patti Smith. São palavras felizes e certeiras.

Descobrir Horses ao vivo, de uma ponta à outra, conhecedores do que ouviremos mas ignorantes de como o encontraremos, nunca será simplesmente revisitar um álbum icónico, como tem sido norma nos últimos tempos – no NOS Primavera Sound, por exemplo, já vimos as Breeders tocarem Last Splash e os Television Marquee Moon. Horses é um disco e uma performance sempre renovados. O rock nunca morreu, mas precisa continuamente de ser salvo. É isso que nos dizem este álbum e os fantasmas que o povoam. Assim em 1975, assim em 2015, quando Patti Smith celebrar as quatro décadas passadas desde a sua edição com um concerto que lhe é inteiramente dedicado. No NOS Primavera Sound, sexta-feira, 5 de Junho, acompanhada pelo guitarrista e jornalista musical Lenny Kaye, companheiro de palco desde a primeira hora, por Jay Dee Daugherty, o baterista original, e por Tony Shananan, baixista que a acompanha há duas décadas, Patti Smith voltará a ele. Um dia antes, actuará em formato acústico, entregue à palavra falada.

Foto
Fotografada por Robert Mapplethorpe, pose andrógina, casaco atirado sobre o ombro como Sinatra Robert Mapplethorpe

Tudo tem um início
No Outono, dia 6 Outubro, Patti Smith dará sequência à celebrada Just Kids, a biografia da sua vida com Robert Mappletorpe, que conhecera em Nova Iorque no final dos anos 1960, e a história de como os dois, ele fotógrafo, ela poetisa e música, descobriram a sua voz artística nos anos de uma juventude vivida intensamente, de descoberta em descoberta: “Os anos 1970 vão ser nossos” – eis quão longe ambicionavam, românticos e ingénuos, certamente ambiciosos. Intitulado M Train e acompanhado de polaroids a preto e branco da autoria de Smith, o novo livro será “uma jornada através de 18 estações”, como descreveu em comunicado a editora do mesmo, a Knof. Através de uma prosa “ que alterna com fluidez entre sonhos e realidade, passado e presente”, Patti Smith leva-nos do pequeno café em Greenwich Village onde se senta todas as manhãs às memórias da sua vida no Michigan com o marido Fred Sonic Smith, guitarrista dos MC5 falecido em 1994. Da Casa Azul de Frida Kahlo, no México, às sepulturas de Sylvia Plath, Arthur Rimbaud, Jean Genet e Yukio Mishima, e a reflexões sobre o ofício da escrita e da composição.

Patti Smith é hoje uma lenda viva da música popular urbana, respeitadíssima e reverenciada. É mais do que isso: ícone de uma afirmação feminina no circo rock que destruiu clichés de género, num universo genericamente machista, pela simples e natural afirmação da sua personalidade artística (“beyond gender”, lia-se no interior da edição original de Horses); e porta-estandarte do movimento punk que se lhe seguiu e de que ela, filha da contracultura da década de 1960 com altar devotado a Jimi Hendrix, Jim Morrison e Bob Dylan, foi bem mais instigadora do que ideóloga. É também Comendadora das Artes e das Letras da República Francesa e foi cantora convidada pelo Papa Francisco para actuar no concerto de Natal do Vaticano em 2014. Tudo consequência do que construiu ao longo de uma discografia que inclui 11 álbuns de estúdio e, em menor escala, da bibliografia iniciada com a colecção de poesia Seventh Heaven, publicado em 1972, e que teve como último tomo o supracitado Just Kids, que lhe valeu ser distinguida com o National Book Award. “Não tenho um grande estilo de vida rock’n’roll, ou uma história para contar de sexo, drogas e rock’n’roll. Julgo que talvez tenha uma história melhor”, disse à Billboard recentemente, quando anunciou M Train. Uma história, como todas, com um início.

Em Please Kill Me, Patti Smith conta como e onde viu “o futuro da poesia”: Mick Jagger num concerto dos Rolling Stones no Madison Square Garden. “Foi a sua performance nua, o seu ritmo, o seu movimento, a sua conversa – estava tão cansado, a dizer coisas como ‘very warm here/ warm warm warm/ it’s very hot here/ hot, hot/ New York, New York, New York / bang, bang, bang’. Nada daquilo era genial – eram-no a sua presença e o seu poder para agarrar o público na palma da mão. Sentia-se a electricidade”, recordou. “Se os Rolling Stones tivessem abandonado o palco e deixado Mick Jagger sozinho, poderia ter sido tão grande como qualquer poeta naquela noite." Patti Smith descobriu ali o que seria a sua poesia. Não a faria sozinha. Pelo contrário.

Dia 10 de Fevereiro de 1971, apresentou-se na Igreja de St. Marks, Nova Iorque, para ler a sua poesia perante as luminárias da East Village (Warhol, Lou Reed, Allen Ginsberg, Sam Shepard). Levava consigo Lenny Kaye, que acompanhou as suas palavras de dissonâncias, feedbacks ou de um ritmo minimal marcado na guitarra. “Fi-lo pela poesia, fi-lo por Rimbaud… Queria fazer fluir na palavra escrita a imediatez e o ataque frontal do rock’n’roll”, recordaria Patti Smith muitos anos depois.

Em 1975 juntavam-se a Lenny Kaye Jay Dee Daugherty, o baixista Ivan Kral e o teclista Richard Sohl. Estavam com eles o produtor John Cale, com quem a banda e Patti Smith mantiveram uma relação tempestuosa mas frutífera, e também, por exemplo, Tom Verlaine, guitarrista e vocalista dos Television, que acrescentaria o seu lirismo peculiar e cativante, quase alienígena, a algumas canções. Nos Electric Lady Studios construídos por Jimi Hendrix, gravaram o reggae pouco canónico de Redondo beach, esticaram Birdland dos quatro minutos originais até aos nove minutos, por insistência de John Cale, transformaram o épico Land em poesia e rock’n’roll trabalhados como colagem de arte plástica  do conto de paixão, violência e morte vivido entre dois homens à citação do Land of the 1000 dances de Wilson Pickett, daí à imagem final de Hendrix no leito de morte, sonhando entre os lençóis com uma simples canção. Ali, nos Electric Lady Studios, ouviu-se a frase de abertura que, por si só, poderia fazer todo o disco: “Jesus died for somebody’s sins, but not mine”.

Quando entrou naquele estúdio, Patti Smith já editara o single de estreia, “Hey Joe/ Pissing Factory” (1974) e já se tornara figura destacada da comunidade reunida em volta do clube CBGB, onde floresceram e floresceriam os Television, os Ramones, Blondie ou os Talking Heads. Quando abandonou o estúdio, aquela banda que, tímido sinal de diferença, chamava “field work” (“trabalho de campo”) ao que as outras bandas chamavam “jams”, e aquela mulher que a liderava não estavam talvez conscientes da história que acabavam de criar. Patti Smith sentia-se certa, porém, de que o seu trabalho estava feito. “A missão estava concluída. A minha ideia sempre fora fazer Horses e seguir em frente. Nunca esperei gravar outro álbum”, confessava à Spin em 2008. A história, como sabemos, revelar-se-ia substancialmente diferente. Mas, apesar de Radio Ethiopia ou de Easter, os álbuns que imediatamente lhe sucederam, e apesar de Twelve ou Banga, editados já este século, é sempre a Horses que regressamos. É a fonte. O manifesto fundador, imortal, de Patti Smith.

Foto
Patti Smith em 1978: “Os anos 1970 vão ser nossos”, acreditavam Patti Smith e o seu companheiro de então, o fotógrafo Robert Mapplethorpe DR

Sugerir correcção
Comentar