Há 20 anos a fazer a festa com os Underworld

Em 1995 os ingleses Underworld estreavam-se em Portugal com um concerto no Porto, pouco tempo depois do lançamento do seu álbum mais icónico, Dubnobasswithmyheadman. Ei-los de regresso, para o tocarem na íntegra.

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Os Underworld tocaram pela primeira vez em Portugal há 20 anos: um concerto memorável, ainda que perturbado por uma série de problemas técnicos, e não tão distante assim do lugar onde actuam no dia 6

Foi no clube Rocks, em Vila Nova de Gaia, que os Underworld tocaram em Portugal pela primeira vez. Estávamos em 1995, a cultura da música de dança começava a impor-se em Portugal e os ingleses situavam-se naquele patamar em que se pressentia o sucesso, mas ainda não o haviam alcançado inteiramente.

Tinham lançado há cerca de ano e meio o fantástico álbum Dubnobasswithmyheadman e ainda estavam a digerir a edição de um novo registo – Second Toughest In The Infants. O êxito transversal chegaria pouco tempo depois com Born Slippy, o tema-fetiche do filme geracional Trainspotting.

Apesar de o espectáculo ter tido algumas falhas técnicas, a verdade é que se tornou um momento inesquecível para quem a ele assistiu. Vinte anos depois, os Underworld estão de regresso ao Porto e Karl Hyde, o vocalista, ainda tem memórias frescas desse concerto. “Lembro-me perfeitamente desse clube, descia-se por uma rampa, e recordo bem a vista para o rio e do outro lado os edifícios da cidade do Porto. Tenho memória de que tivemos imensos problemas técnicos”, ri-se ele, “e que tivemos de parar a meio, às tantas. Não era fácil montar o nosso espectáculo naquela época. A estrutura era outra. Havia um misto de maquinaria, instrumentos e fios por todo o lado”, volta a rir.

A proposta que vêm apresentar este sábado ao NOS Primavera Sound acaba por constituir um regresso a essa época. Trata-se de apresentar na íntegra Dubnobasswithmyheadman, o seu álbum mais icónico. No ano passado, o disco foi reeditado e para celebrar os 20 anos sobre o seu lançamento os Underworld deram um concerto onde o tocaram na íntegra. A recepção foi tão calorosa, apareceram tantas propostas para repetirem, que voltaram a fazê-lo, embora digam que é provável que a última vez seja mesmo a do próximo sábado no recinto do Parque da Cidade.

“Tínhamos intenção de apenas fazer um concerto nesse modelo”, conta Hyde. Foi em Dezembro do ano passado, em Londres, pouco antes do Natal. Mas o sucesso da operação fê-los mudar de ideias. “A coisa fugiu-nos um pouco do controlo porque esse concerto inaugural correu muito bem e começaram a chover convites para repetirmos. Em Março acabámos por fazer uma pequena digressão à volta desse disco, o que nos deu imenso prazer, mas não queremos banalizar a coisa; daí que tenhamos respondido afirmativamente ao pedido específico do Primavera Sound, mas não sei se iremos repetir mais.”

A história do grupo possui algumas singularidades. No final dos anos 1980, os Underworld andaram perdidos em indefinições e lançaram dois álbuns que passaram despercebidos. Foi só depois da edição, em Janeiro de 2004, de Dubnobasswithmyheadman, e da entrada de Darren Emerson, que a situação mudou. Nesse disco apostavam numa música vibrante e hipnótica que concretizava uma simbiose entre as dinâmicas rítmicas do tecno, os ambientes do house, os efeitos do trance, algumas guitarras rock e a aposta numa vaga ideia de canção que remetia para alguns dos territórios pop menos padronizados.

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Tal como Patti Smith, os Underworld vêm ao NOS Primavera Sound tocar um álbum icónico do princípio ao fim: Dubnobasswithmy-headman, reeditado há um ano. Talvez seja a última vez que o fazem, avisa o vocalista Karl Hyde DR

Depois dessa obra, até aos final dos anos 1990, voltaram a lançar mais dois sólidos álbuns (Second Toughest In The Infants ou Beaucoup Fish) e nos anos 2000 surgiram mais três, mas a que faltava o sopro de vitalidade dos anteriores registos. Já sem Darren Emerson, o foco de Karl Hyde (voz, guitarra) e Rick Smith (teclas e programações) virou-se ainda mais para os espectáculos ao vivo.  

A esperança perdida
À imagem dos Chemical Brothers, também os Underworld sempre apostaram nessa ideia de que a música de dança podia ser exposta ao vivo de forma dinâmica em festivais ou espectáculos para milhares. É fácil afirmar que o apogeu do projecto foi nos anos 1990, quando a música de dança originava revoluções criativas com facilidade. Mas talvez seja errado. “Percebo que se possa ter essa noção porque esses anos foram iniciáticos. Houve qualquer coisa que aconteceu ali e só ali poderia ter sucedido, mas se formos mais analíticos não nos fixaremos nessa ideia. Em relação aos Underworld, o que posso dizer é que nunca nos fixámos. Estamos sempre a diversificar a nossa actividade. E em relação à música de dança em geral, o que constato é que hoje se tornou numa força maior, mais abrangente e global.”

É difícil não concordar. Mas o lastro que esse disco deixou seria hoje difícil de alcançar. O contexto é outro. “Sem dúvida”, concorda. “Naquela altura foi um álbum importante porque estávamos a viver um momento de transição com cada vez mais pessoas a interessarem-se por electrónica pela primeira vez. Por outro lado, se pensarmos bem, a música de dança, até pelo contexto político, era uma forma de rebelião. Era qualquer coisa que fugia ao controlo da cultura dominante, ao contrário do rock, mais integrado. De repente a cultura da música de dança permitia que uma multidão se juntasse à volta de músicos ou DJ de que quase ninguém tinha ouvido falar.”

Era música que não passava nas rádios, que as grandes editoras não sabiam promover e em que o culto da personalidade não vingava. E isso, paradoxalmente, era extremamente poderoso. “Aquilo que o punk prometeu mas que nunca alcançou verdadeiramente – a possibilidade de se ter uma voz sem seguir as regras dominantes alcançava ali, finalmente, a sua expressão máxima. Foi uma fase muito excitante nesse sentido. E o álbum não seguia as tradições de nenhum género musical instituído. Era inspirado em muitas tipologias, apesar de filiado na cultura indie e na música de dança.”

Na actualidade, a dupla possui uma audiência transgeracional, embora Karl Hyde diga que essa sensação não é nova. Existem razões específicas para o explicar, que ele reenvia para o ambiente à volta do grupo. “Quando começámos a tocar ao vivo, nos anos 1990, a maior parte das pessoas da assistência era mais velha do que nós. Sentíamos que tocávamos para pessoas que foram encontrar na nossa música de dança a esperança que havia sido perdida na ressaca da contracultura dos anos 1960”, diz ele, para de seguida apontar razões mais genéricas.

“Se pensarmos bem, desde o período disco nos anos 1970, a idade e a forma como as pessoas se vestiam nunca foram uma questão central na música de dança. Havia interesse pela música e pela celebração e ponto final. E hoje sinto o mesmo, embora por vezes me surpreenda por perceber que ainda somos tão populares para grupos de pessoas muito diferentes."
 
Além da recriação
Na definição do espectáculo especial que os Underworld vão levar ao Primavera Sound existiram desafios importantes. Por um lado desejavam uma ligação à sonoridade original do álbum, por outro não queriam perder o sentido de improviso que os define em palco. O equilíbrio entre essas duas dimensões não foi fácil de concretizar, diz-nos Karl Hyde. 

“Gosto de espectáculos onde exista muito espaço para a improvisação. O que acontece neste caso é que tentamos cantar e tocar o mais próximo possível do que se ouve no disco, o que acaba por ser uma experiência nova para nós. É um desafio, porque a tentação é improvisar. Mas o resultado final acaba por ser mais do que uma mera recriação sonora. Esse balanço não é fácil. Para mim, pessoalmente, é muito exigente, porque tenho imenso que fazer”, ri-se ele. Ao longo dos anos ficou conhecido por colocar um grande empenho físico nas suas prestações, dançando e incentivando o público, mas neste modelo é mais sóbrio, afirma. “Tenho de me concentrar muito”, justifica. “Tenho de ter atenção redobrada, porque toco guitarra e baixo e estou sempre metido entre pedais.”

Quando lhe perguntamos sobre o restante cartaz do festival, diz que ainda não olhou para ele com cuidado, mas tem uma certeza: “Quero ver a Patti Smith! É uma das minhas heroínas. Existem poucos artistas relativamente aos quais consigo olhar para o todo da sua obra e vida e reconhecer-me nele. No caso dela, isso acontece. E com Neil Young,  Miles Davis ou Picasso também. Neles encontro essa contínua vontade de reinvenção e de procura. E isso é muito inspirador.”

O nome de Picasso está longe de constituir um acaso. A cultura visual não é um passatempo na vida de Karl Hyde. Tem formação em artes e continua a expor – pintura, desenhos, instalações vídeo – com regularidade, para além de durante anos ter sido um dos responsáveis pela Tomato, um colectivo de arte e design aplicado às novas tecnologias.

“Tudo o que tenha a ver com criatividade me interessa, de videojogos à pintura clássica. Vivemos num tempo onde tudo é possível, basta estarmos disponíveis para perceber o que se passa à volta”, afirma, ao mesmo tempo que lhe perguntamos como foi trabalhar com Brian Eno em dois surpreendentes álbuns lançados em parceria o ano passado (Someday World e High Life). “É outra alma irrequieta!”, ri-se, “e só podia ter sido uma experiência gratificante. Aprende-se muito com ele. Tem sempre um outro olhar sobre as coisas que te faz pensar nelas de forma diferente e isso é incrível.”

Ao longo da conversa, Karl Hyde é sempre assim, luminoso, capaz de percepcionar os ângulos mais positivos da realidade. Falámos com ele manhã cedo, entre viagens. Arriscámos que provavelmente andar em digressão o aborrece, mas a resposta veio exactamente na mesma toada. “Nem pensar! Gosto de ser estimulado por novas paisagens, novas cores e novos sons. Fotografo e escrevo todos os dias no meu blogue – gosto dessa disciplina que pratico diariamente há 15 anos – e tento que todas essas experiências possam ser integradas nos meus desenvolvimentos criativos ou em novas situações. Por isso, andar à volta do mundo, mesmo desta forma, é uma oportunidade fantástica!”  

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