Muitas balas e balinhas

Na verdade, nunca fui entusiasta do Acordo; encarei-o com desagrado e adotei-o com relutância, mas sem drama.

Quando já não há pés, dão-se tiros nos cotos; quando se acabam as balas, roem-se as muletas. E há quem se preste ao papel de Cavaleiro Negro dos Monty Python e o Cálice Sagrado.

É esta a conclusão que tiro dos recorrentes clamores de oposição ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Foi com surpresa que me vi envolvido num recente: o texto de Maria Filomena Mölder (MFM), publicado neste jornal no dia 4 de maio, com o nome O direito de ser atropelado. A surpresa resulta de ser alvo de crítica feroz e cerrada sem nunca ter assumido a defesa do AO90. Na verdade, nunca fui entusiasta do Acordo; encarei-o com desagrado e adotei-o com relutância, mas sem drama. O que fiz, sim, foi escrever vários textos no blogue Jugular, não sobre o AO90 mas acerca do bruaá irracional e insensato que rodeia o tema e, sobretudo, a cegueira e a falta de informação mas também a má-fé, que é real dos que rejeitam o AO90 por mero preconceito, ignorância, temor, preguiça, seguidismo ou ligeireza. Isto, por si só, nem seria muito grave; pior é quando lhe está associado um inegável teor de arrogância, nacionalismo básico e provincianismo serôdio. Um dos meus textos fala de “5 pecados mortais” que envolvia o escarcéu que então circulava pelas redes sociais (o texto saiu no blogue em 2012 e foi revisto e publicado na Brotéria em 2013): estreiteza de vistas, ignorância, arrogância, preguiça e reacionarismo, tudo num contexto alargado (a “bandeja de História”) de tempo e espaço.

Maria Filomena Mölder leu agora e ter-se-á sentido atingida, quiçá ofendida. Não compreendeu que o texto visa atitudes e não pessoas. E reagiu com um primeiro equívoco básico: não percebeu que disparar sobre um texto de opinião velho de três anos e de um autor obscuro para tentar acertar no AO90 é flagrante sinal de desorientação e falta de pontaria, motivada por uma estratégia de alvejar tudo o que mexe, leia-se, tudo o que destoa do mantra antiAO90. E assim se acerta nos cotos quando já não restam pés.

O rastilho que fez MFM detonar foi uma pequena nota que escrevi recentemente sobre o cartaz de um fórum que a mesma promoveu. Uma dupla ofensa, concluo; e de tal forma que a sua intervenção no mesmo evento não incidiu sobre o AO90, mas sobre os meus textos. Registo o peculiar senso de correção e elegância de quem me eleva à categoria de bombo da sua festa em semelhantes circunstâncias, ou seja, na minha ausência.

No artigo, a “filósofa e ensaísta” chama-me repetidamente de historiador, mas apenas para me acusar de ter “mandado às urtigas” as respetivas “obrigações”, por não ter “probidade, isto é, [não proceder à] recolha e análise minuciosa dos documentos disponíveis e a sua fundamentada seleção e classificação”; agradeço a tentativa de me ensinar o meu ofício, embora me escuse, por deferência e respeito, a responder na mesma moeda, ou seja, a dar bitaites sobre as suas próprias “obrigações” enquanto filósofa. Daqui emerge um segundo equívoco: não invoquei a condição de historiador nem me propus defender a validade científica do AO90. M.F.M. parece não distinguir textos científicos de crónicas ou artigos de opinião; uma deficiência grave, pelo menos, no meu ofício.

Tomado o balanço, imputa-me então um longo rosário de defeitos: entre outros, que “seleciono ardilosamente argumentos”, que excluí Angola e Moçambique do “mundo lusófono”, que padeço de uma “ignorância voluntária” e de um “esquecimento premeditado”, que não cito “um único documento contra o AO90”, que pratico uma “forma leviana e aviltante de antropologia caseira” e que ignoro obras “de pessoas que não são leigos e que sabem do que estão a falar” (presumo que ao contrário de mim). Por fim, devolve-me os tais 5 pecados mortais e, de forma condescendente, aconselha-me a ver um vídeo. E termina com o que, deduzo, é a sua conclusão lógica: o AO90 abriu “uma caixa de Pandora” e “o caos ortográfico está instalado”. Elementar. QED. Faltou-lhe, talvez, espaço para rematar com uma das conclusões do fórum: exigir um referendo ao AO90. Assim se chega à fase do roer as muletas, quando já não há pés para alvejar nem balas a disparar. O texto de M.F.M. é uma boa demonstração do delírio enviesado para onde frequentemente resvalam os autoproclamados paladinos da língua portuguesa.

Para centrar o debate no essencial, não falo de História, das alterações gráficas ao longo dos séculos ou do ridículo anacronismo de conservar uma ortografia no formol, não relembro que em português sempre houve palavras homógrafas e nem aponto o dedo à confusão que grassa entre língua, escrita, ortografia e AO90. Apenas questões mais elementares: no meio das nuvens de poeira e dos estrondos da pólvora, não se percebe se esta Aliança Rebelde que luta contra o Império e seus sequazes considera necessário haver um acordo ortográfico ratificado por Portugal e Brasil; se rejeita qualquer acordo ou apenas este AO90; finalmente, se o problema está no AO90 ou nas deficiências da sua aplicação e divulgação. As bombardas atingem tudo, indiscriminadamente: agigantar o presumido apocalipse do “caos ortográfico”, criar confusão (de que o cartaz do referido fórum é exemplo paradigmático), anunciar colapsos, inventar notícias (a de que o Brasil rejeitou o AO, entre outras), acicatar o serôdio nacionalismo lusitano, contra o AO90 marchar, marchar, lançar boatos e papões. Como se os desafios à língua portuguesa não se colocassem a uma escala global, mas paroquiana; como se a principal ameaça não estivesse no avanço imparável do inglês, mas em hífenes e consoantes mudas; como se o português fosse propriedade nossa, orgulhosamente sós a defender a sua alegada pureza, e não um património de centenas de milhões de pessoas; como se os erros de ortografia não fossem mazela antiga, mas novidade pós-AO90; como se o AO90, no fundo, fosse mais do que aspeto menor de uma convenção, de um acerto na ortografia. Não é. É apenas isso.

Investigador, Universidade Católica Portuguesa

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