Queriam que ela se desintoxicasse, e como o pai achava que estava tudo bem, ela disse não, não, não

Amy, o documentário de Asif Kapadia que foi exibido no Festival de Cannes na secção da Meia-Noite, conta uma história que - e é essa a sua força - é um arquétipo.

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O documentário (re)utiliza uma ampla variedade de material que foi dando conta da vida em público da cantora
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Queriam que ela se desintoxicasse, ela não tinha tempo para isso, e como o pai achava que estava tudo bem, ela disse não, não, não. Mas para as vozes e os testemunhos de Amy, o documentário de Asif Kapadia sobre uma rainha da soul (ou uma rainha do jazz, da estirpe de Sarah Vaughan ou Ella Fitzgerald, como sentenciou uma autoridade chamada Tony Bennett), esse teria sido o momento decisivo.

Depois de Frank (disco de 2003), mas antes das gravações de Back to Black (2006), o disco, com o êxito Rehab, que a lançou de forma inexorável para a estratosfera, Amy estava já embrulhada nas suas toxicodependências, o álcool, as drogas e Blake Fielder – o amor talvez fosse a maior das intoxicações.

Mas, diz-se em Amy, que foi exibido no Festival de Cannes na secção da Meia-Noite, ainda haveria tempo de tudo mudar. Porque o mundo era ainda um modelo controlável, sem concertos para milhares, sem o circo de paparazzi, managers e promotores e demais figuras de autoridade paterna que Winehouse procurou e que sempre lhe faltaram – como o pai, Mitch Winehouse, que fez ruir a estabilidade familiar, abandonando-a à mãe, para regressar como conselheiro, gerindo a estrela e, o documentário deixa campo aberto a que pensemos isso, interessado sobretudo no negócio.

Provavelmente, se ela tivesse dito sim a essa desintoxicação, não teríamos Back to Black, com a sua escrita a vivo, pela própria, sobre o que a consumia. O trabalho sobre esse disco, diz o produtor Mark Ronson, foi um momento de catarse sobre o que se estava a passar na vida de Amy e simultaneamente a fixação de uma narrativa de autodestruição que a conduziria ao fim. Provavelmente não teríamos a estrela. Mas provavelmente, é uma hipótese verbalizada no documentário, teríamos ainda hoje Amy Winehouse e não mais uma casualty da pop, morta aos 27 anos, no dia 23 de Julho de 2011. 

Amy comeca a documentar a vida de Amy na adolescência, o momento em que o pai tem dupla vida e, depois, abandona a filha e a mulher – momento decisivo, dizem alguns, porque foi a origem da sexualidade agressiva de Winehouse. Há Amy e as amigas, imagem que seria quebrada com o estrelato e com as drogas, e que a morte não deixou recompor. Há Amy e a cena dos bares de Camden, Londres, com a sujidade das guitarras que depois entraria para o seu jazz, para a sua música.

Era a menina do papá, mas o papá quando regressou à vida dela veio com as câmaras, com os fotógrafos, com as televisões, aparentemente sem se dar conta da fragilidade da filha - como naquelas imagens em que a família está em férias, Amy a recuperar dos excessos, equilíbrio precário, e Mitch a permitir que esse processo seja invadido pelas câmaras de um reality show e acusando a filha de não ser prestável para os autógrafos dos fãs em turismo.

Amy monta esse tipo de imagens para construir uma biografia. Não há talking heads, mas a (re)utilização de uma ampla variedade de material que foi dando conta da vida em público da cantora: talk shows televisivos, concertos pequenos ou os espectáculos para multidões, como aquele em Belgrado que supostamente marcaria um comeback e que foi, afinal, o início da queda final, com a cantora perdida em palco, o olhar a vaguear, sorriso congelado, os assobios...

E também de imagens filmadas por amigos e amores – como Blake Fielder, sobre quem pesará o fardo de ter introduzido Amy  às drogas duras para assim poder ele próprio sustentar o seu próprio hábito. Sobre essas imagens, aparecem frequentemente as palavras que Amy escrevia para as suas cancões. O que pode servir para o karaoke interior de um espectador comovido. Funciona sobretudo como certificação da autenticidade: as palavras como ponto de chegada, síntese, pela própria protagonista, de uma vida. 

É por isso, julgamos, por a própria Amy ter exposto a intimidade nas canções, que o documentário se permite utilizar toda uma gama de material que na sua essência é violador - por exemplo, fotos na casa de Camden no momento de consumo de drogas, a coca na mesa, as folhas de alumínio... - e integra uma máquina autodestrutiva, o espectáculo da pop, sem fazer grandes perguntas.

Amy mantém-se num equilíbrio ambíguo, sem diabolizar (isso poderia ser hipócrita, voltar-se contra o próprio filme) mas fazendo tangentes a um mundo que à partida expõe para poder contar uma história que - é essa a sua força - é um arquétipo.

Quando se ouve Rehab, o hit, em que Amy canta “They tried to make me go to rehab/I said, ‘no, no, no’/Yes, I been black/But when I come back, you'll know, know, know/I ain't got the time/And if my daddy thinks I'm fine…” , é  impossível não nos darmos conta da mágoa, da dúvida de quem se sente enganada, mas sobretudo de um sentido de inescapabilidade e de construção de uma mitologia autodestrutiva. Mais à frente na sua vida e algumas desintoxicações depois, a própria Amy confessaria a um amigo, exausta: “Tudo isto sem drogas é uma chatice”.

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