Da decepção à vingança, As Mil e uma Noites em Cannes

O produtor Luís Urbano apontava para a competição do maior festival de cinema do mundo. Achava que era esse o desafio que o filme, que documenta e ficciona um ano da vida de Portugal na decadente Europa, criava. Mas As Mil e uma Noites foi recusado. Depois da desilusão, o filme de Miguel Gomes reinventa-se como acontecimento na alternativa Quinzena dos Realizadores: seis horas e um quarto, três volumes, três dias de exibição.

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O produtor Luís Urbano Miguel Manso
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Miguel Gomes, o realizador de Mil e Uma Noites Bruno Duarte
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O Inquieto, O Desolado, O Encantado são os títulos dos três volumes que constituem as seis horas e um quarto de As Mil e uma Noites, o filme de Miguel Gomes que vai ter estreia mundial na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes — a 16, 18 e 20 de Maio.

Será uma exibição em três partes, como se de filmes autónomos se tratassem, e com intervalo de tempo entre cada uma, para as tonalidades de cada volume serem digeridas, para haver pausa de respiração entre cada uma – é assim que o produtor (Luís Urbano) e realizador fazem questão, quer no festival quer depois na estreia comercial nos vários países, onde se deixa a cada distribuidor a liberdade de desenhar o formato das exibições, o espaço entre elas.

Da inquietação ao encantamento, passando pela desolação: talvez possa ser essa a aventura de As Mil e uma Noites até chegar à Croisette. O produtor e realizador começaram a apontar para a competição do maior festival do mundo desde Outubro/Novembro do ano passado, com a pós-produção a ser feita com os olhos postos no Sul de França. Acharam que era esse o desafio que o filme criava a si próprio. Mas o novo filme de Miguel Gomes não vai estar em competição, passará numa secção que mais agressivamente quer ser alternativa ao festival oficial: a Quinzena dos Realizadores. Depois da desilusão, é aí que as Mil e Uma Noites quer reinventar-se como acontecimento.

O Inquieto
Miguel Gomes esteve na Quinzena com Aquele Querido Mês de Agosto (2008). Competiu depois em Berlim com Tabu (2012, Prémio Alfred Bauer). Desta vez não poderia ser menos do que a competição de Cannes – se isto parece uma dinâmica de upgrades, sim, aqui joga-se: o sistema de festivais vai elevando a fasquia, o buzz começou cedo a “ver” Gomes em concurso na Croisette e é natural que se tivesse acreditado nisso.

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“Era esse o objectivo”, admite Luís Urbano. “Achei que era possível, tendo em conta o filme que é, por ser o retrato de um país, pela ressonância política forte numa Europa decadente e em perda, e com este dispositivo de uma Xerazade que conta histórias sobre um país perdido” – um filme cuja proposta de financiamento não foi sequer um argumento escrito mas o projecto de filmar Portugal e os seus acontecimentos durante um ano, como se fosse em directo, com as histórias reais a serem seleccionadas e ficcionadas por uma equipa de jornalistas e argumentistas.

“O filme é grandioso, Tínhamos essa esperança. É claro que depois os desejos não correspondem à realidade, ou porque um filme não tem corpo para a competição ou porque tem corpo e ocupa demasiado espaço”. Luís Urbano está convencido de que com As Mil e uma Noites se tratou da segunda hipótese.

Tinha sido apresentada a candidatura ao comité de selecção, que incluía a calendarização em três volumes, com intervalo de respiração entre eles — “fizemos várias experiências de visionamento, pareceu-nos a forma mais adequada” de exibir o filme. Que foi visto por Cannes, e a direcção do festival ficou de fazer uma proposta. “O tempo foi passando, mas a proposta não surgiu e Cannes deixou mesmo de falar comigo”, conta Urbano. Estava-se na segunda semana de Março, a selecção iria ser anunciada a 16 de Abril. Quando, através de Christian Jeune, adjunto do delegado-geral Thierry Frémaux, chegou a Urbano o primeiro sinal de que a secção paralela oficial Un Certain Regard era o espaço destinado ao filme, Urbano sentiu “uma enorme desilusão”. Não iria potenciar a vontade de acontecimento de As Mil e uma Noites. Não iria sequer permitir a exibição por volumes. Cheirou-lhe a “prémio de consolação”, coisa pouca para “um filme completamente rock’n roll” que a competição deveria caucionar.

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Christian Jeune aconselhou então o produtor a colocar por escrito a Frémaux essa decepção, essa veemência, coisa que Luís Urbano fez – carta escrita a meias com Miguel Gomes. A ela se refere Frémaux, aliás, numa entrevista dada à revista francesa Telérama – onde não é nada sibilino: “Miguel Gomes faz parte desses cineastas privilegiados por uma parte da opinião segundo o clássico mecanismo que consagra certos filmes como obras-primas antes de serem vistos. Isso é tão ridículo como o inverso e não presta serviço aos cineastas. Os seus idólatras estão a postos e o filme, mesmo que imperfeito, é um belo gesto de cinema”.

O Desolado
A verdade, segundo Urbano, é que nunca houve resposta do delegado-geral. A quarta-feira anterior ao anúncio da programação, quando o comité de selecção se reunia pela última vez para fixar os títulos a anunciar no dia seguinte, foi “o dia mais longo” para o produtor português, à espera de um sim ou sopas. Que chegou às 23h: o festival estaria disposto a dar uma semana mais a Luís Urbano & Ca. para pensarem no Un Certain Regard. O anúncio poderia ser feito mais tarde, como aconteceu, aliás, com a inclusão tardia dos novos filmes de Brillante Mendoza e Apichatpong Weerasethakul (Un Certain Regard) e Gaspar Noé (Sessão da Meia Noite).

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“Seria uma espécie de Medalha de Mérito, não foi para isso que mobilizámos uma equipa, jornalistas, milhões de euros, dois anos das nossas vidas e não foi para isso que montámos uma fábrica de fazer um filme. Acho que o Frémaux não gostou do filme, o que é legítimo se bem que não acho que o gosto pessoal deva ditar a programação a 100 por cento. Na lógica dele, a competição tem de ter a quota de indústria e a quota de cinema de autor de origem demarcada, os Nanni Moretti... Ou então as suas descobertas. O filme do Miguel não é um filme de indústria, não tem origem demarcada. E o Miguel já foi descoberto.” É a ideia de que Cannes não sabe o que fazer a certos objectos, uma “perversão” do sistema que engendrou de suposta coabitação de diferentes cinemas: é que alguns desses títulos podem correr o risco... de ganhar. Quando isso acontece, ninguém sabe como reagir. Viver-se-á, hoje, segundo Urbano, um efeito de ressaca devido ao Palmarés de 2010 (júri presidido por Tim Burton), com a Palma de Ouro a O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, de Apichatpong Weerasethakul (“um filme de que o Frémaux também não gostava”). Essa Palma deixou muita gente maravilhada, pelo risco. Mas muito mais gente incrédula - há a memória de textos de balanço em jornais de referência a perguntarem-se o que é que se tinha passado ali, o que era aquela Palma. Que outro cineasta não foi aceite para a competição na edição de 2015? Precisamente, Apichatpong Weerasethakul e o seu Cemetery of Splendour, o que causou ondas de choque em alguns sectores por ser com o tailandês que se estabelece uma primeira vez: a primeira vez que a seguir a uma Palma de Ouro um realizador é recusado para a competição e tem de se contentar com o Un Certain Regard.

O Encantado
Luis Urbano já tinha mostrado As Mil e uma Noites ao Festival de Veneza “no caso de...”. E mostrou-o, quando a decepção tomou conta de si, ao director artístico da Quinzena, Édouard Waintrop. Foi amor à primeira vista, em três sessões. “O Waintrop disse-me que o filme, as três sessões, era tudo aquilo o que a Quinzena queria em termos de programação”. Waintrop disse, de facto, em comunicado: “As Mil e Uma Noites, o filme, ou antes os três maravilhosos filmes de Miguel Gomes serão programados na Quinzena dos Realizadores", acrescentando que “esta soberba série, inspirada nas histórias contadas por Xerazade e em factos ocorridos no Portugal dos anos 2013 e 2014 – um país então submetido a uma política que negava toda a justiça social –, irá dar o tom à programação” deste ano.

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Foi uma vingança. “Ganhámos espaço para mostrar o filme, e tal como o queríamos. Ganhámos um estatuto de respect, porque não aceitámos o que a Selecção Oficial nos quis dar. Ganhámos uma atenção com todo esse processo, e não pagámos por ela. Tínhamos de ser fiéis ao filme, que atropela regras, quebra-as.”

Expectativas, agora? “Vender o filme. Quebrar o mito de que é um filme ‘enorme’, por causa das seis horas de duração: a lógica é que a distribuição programe os três filmes em sequência.” E estreá-lo em Portugal antes das eleições. Como um “contributo”.

“Há uma série de coisas que as pessoas podem identificar, histórias recentes que aparecem ficcionadas, a história dos estaleiros de Viana do Castelo, a manifestação dos polícias, o desemprego, os crimes no interior de Portugal. Não é nenhum apelo ao voto. Mas interessa-nos mostrar este retrato do país.”

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