Esta peça vai mudar o mundo

O Back to Back Theatre traz até à Culturgest a saga de um deus hindu com a missão de resgatar a suástica das mãos de Adolf Hitler. Ganesh Versus the Third Reich tem este twist: todos menos um dos actores têm o tipo de deficiência que a máquina nazi quis eliminar da face do mundo.

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Jeff Busby

Bruce Gladwin, o encenador que há 15 anos quis dirigir a companhia de teatro mais libertadora e rebelde que encontrou em toda a Austrália apesar de em casa ter sido ensinado a achar que olhar de frente para um deficiente é feio, diz-nos que Ganesh Versus the Third Reich foi feito no Google e não temos razões para duvidar até ao momento em que as luzes se apagam e em cima do palco resplandecem um sofá, uma mesa e um par de cortinas transparentes encostadas a um canto. Mark já está sentado, a mexer no colarinho, quando Simon entra e pergunta a alguém que veremos surgir dos bastidores se é ele o protagonista (“Sim”) e quem mais entra na peça (“Não tenho a certeza”), para então lhe comunicar oficialmente que adoraria entrar também, havendo papéis que sobrem para ele e para o amigo do sofá, que ao longo da próxima hora e meia não dirá muito mais do que “sim” e “não”, apesar de a certa altura a missão mais impossível do espectáculo, ser Adolf Hitler por uns minutos, parecer em vias de lhe ser imposta.

Não, Ganesh Versus the Third Reich não foi certamente feito no Google. Não tanto quanto foi feito na sala de ensaios, cujas alegrias e tensões o espectáculo em parte reproduz, construindo, mais do que uma ficção, “a autobiografia romanceada do Back to Back Theatre durante o processo de criação de uma peça”. O que teremos à frente nos próximos dias 14 e 15 na Culturgest de Lisboa é, portanto, a saga de um deus hindu, o elefante Ganesh, a quem Shiva confia a missão impossível de resgatar a suástica das mãos do próprio Adolf Hitler, enquanto lá fora decorre esse apocalipse para judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e deficientes que foi a Segunda Guerra Mundial, mas também as discussões de bastidores que a montagem de qualquer espectáculo da companhia australiana suscita, assim como a crónica viva do progresso dos ensaios. É já extraordinário que chegue e ainda nem mencionámos o twist, que ao fim dos primeiros minutos nos aterra em cima com a violência inesperada de um murro no estômago: todos menos um dos actores em palco (David Woods, que faz de encenador) são portadores de deficiência, e portanto nem sequer estariam cá para contar esta história se a Alemanha nazi tivesse vencido a guerra e conseguido eliminar para sempre da face do mundo civilizado esta percentagem da população – que de resto, como aliás sublinha Bruce Gladwin ao telefone com o Ípsilon, está inevitavelmente em vias de extinção com a generalização da tecnologia de diagnóstico pré-natal.

O drama, claro, não é que esse cenário representa teoricamente o fim de uma experiência como o Back to Back Theatre, argumenta o director artístico da companhia da pequena cidade de Geelong, no estado de Victoria – uma companhia fundada em 1987 quando a política estatal para os deficientes passou a ir menos pela institucionalização, libertando recursos financeiros para a formação e o emprego e forçando a verdadeira inclusão de cidadãos até aí socialmente segregados, ainda que com a melhor das intenções. O drama é que pessoas – actores profissionais, no caso – como Mark e Simon são portas para estados que dificilmente alcançaríamos, pelo menos sóbrios. “Há um incrível sentido de liberdade numa companhia como o Back to Back Theatre. Trabalhar aqui abriu a minha mente para formas de inteligência que eu desconhecia. Claro que é exigente: alguns dos actores com que trabalhamos não sabem ler nem escrever, é preciso repensar totalmente o lugar do texto no teatro. Em cada processo, definimos o que se ajusta ao elenco, o que faz desta uma das raras companhias australianas verdadeiramente experimentais, uma vez que a tradição ainda é muito textual. São sobretudo grandes improvisadores: se lhes pedires, estarão 45 minutos seguidos a improvisar, têm uma energia inesgotável. Para eles, a imaginação é uma ferramenta de libertação – e para o público também.”

Uma jornada
No caso de Ganesh Versus the Third Reich, a improvisação começou num workshop em que, vindas sabe-se lá de onde, apareceram duas personagens irresistíveis, o deus-elefante do hinduísmo e um neo-nazi. “Uma das actrizes estava obcecada com o Ganesh, não parava de o desenhar. E depois fizemos umas experiências de manipulação de voz e às tantas outro dos actores apareceu com um neo-nazi”, explica Bruce Gladwin. É precisamente aqui que entra o Google: minutos depois, o Back to Back Theatre encontrava a ligação óbvia entre Hitler e a Índia, a cruz suástica de que o Terceiro Reich se terá apropriado para dela fazer a sua maneira muito gráfica de comunicar uma visão do mundo.   

Mais umas teclas enter e estava definido o plot: um deus hindu em jornada pela Europa, com uma visita à Auschwitz do tenebroso Dr. Mengele pelo meio. Mas sobretudo estava definida, ou pelo menos iniciada, a discussão paralela que Ganesh Versus the Third Reich arrastou dos bastidores para o centro do palco e que às tantas atira à cara do espectador confortavelmente sentado numa cadeira a ter a sua experiência freak de assistir pelo menos uma vez na vida a um espectáculo levantado por pessoas, enfim, diferentes. “O catalisador pode vir de fora, mas todo o trabalho da companhia é escrito e desenvolvido pelos actores e por mim; vem dos corações e das cabeças deles”, contextualiza o director artístico, antes de acrescentar que esta peça, como outras no percurso do Back to Back Theatre, é a resposta a uma pergunta colocada por uma peça anterior. “Quando ao fomos ao festival Kunsten, na Bélgica, apresentar o Food Court, houve alguém que, no debate final, disse que não acreditava que a peça tivesse sido escrita pelos nossos actores e que nos acusou de os explorarmos – de pormos as nossas palavras nas bocas deles. É um debate legítimo, e um debate que nos interessa: quem é o verdadeiro autor de um espectáculo de teatro?”.

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Um deus hindu na Alemanha nazi: havia maneiras menos rebuscadas de falar sobre o abuso de poder, mas não tinham a mesma graça Jeff Busby

É um debate que tem lugar em cena, à nossa frente, a partir do momento em que um encenador com inclinação para o bullying e um actor do contra questionam se Mark, que tem “o cérebro de um peixinho dourado”, pode fazer de Hitler – ou mesmo de judeu perseguido. “O que foi singular neste processo foi que a distância entre a improvisação e o debate se tornou tão pouco nítida que a certa altura deixámos de os distinguir. Os actores tornaram-se avatares deles próprios. Há vários episódios na peça que são muito próximos da improvisação que os originou”, conta Bruce Gladwin. E sim, quanto a essa questão do direito que uma companhia regional da Austrália tem de representar em palco o Holocausto, também eles tiveram dúvidas: “Tentei encontrar formas de os actores se relacionarem com este acontecimento enorme. Fomos ao Museu do Holocausto em Melbourne e aprendemos imenso sobre o T4, o programa nazi de extermínio da deficiência, primeiro como contributo para o esforço de guerra e depois como parte da política dos campos de concentração. É material extremamente poderoso para os actores porque questiona a sua própria existência na sociedade. Para nós, tal como para Ganesh, também isto foi uma jornada: começámos por achar que não tínhamos o direito de tocar no assunto, e acabámos a achar que se uma companhia como o Back to Back Theatre não tem esse direito, então mais ninguém tem.”

Entretanto, a macro-narrativa da História com H grande que se conta em Ganesh Versus the Third Reich tem o seu contraponto bem menos geopolítico na pequena história de uma companhia violentada por um encenador explosivo. “É uma situação muito comum na sala de ensaios, mas também é um tipo menor de abuso de poder muito comum noutros contextos mais domésticos: pode acontecer entre um professor e um aluno, um médico e um doente, um marido e uma mulher”, reforça Bruce Gladwin.

Na verdade, é quando se posiciona nesse e noutros debates – muito recentemente a companhia foi abordada por uma estação de televisão para reflectir sobre o decréscimo do número de pessoas com Síndrome de Down – que o Back to Back Theatre verdadeiramente cumpre a sua também impossível missão. “O que me fez querer trabalhar com estes actores foi o facto de a voz deles ser muito invulgar. São óptimos comentadores políticos, sociais, porque estão à margem das instituições normais: não há expectativas de que vão para a universidade, de que tenham um emprego, de que casem, de que tenham filhos. A companhia foi criada para isso: para elevar estes actores ao estatuto de vozes autorizadas, e ao mesmo tempo obrigar o público a reflectir sobre os paradigmas e os parâmetros dentro dos quais todos vivemos”, argumenta. E perante aquele momento em que o encenador da peça dentro da peça declara que “isto que temos aqui vai mudar o mundo”, pensamos mesmo, talvez como já não pensássemos há muito tempo, “oh pá, e porque não?”.

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