A biotecnologia pode rivalizar com o bacalhau?

Sete em dez discursos desta visita de Cavaco Silva à Noruega serão dedicados à “economia azul” e à importância dos recursos biológicos marinhos.

Foto
Cavaco Silva está na Noruega Tiago Machado/Arquivo

A primeira visita oficial de Cavaco Silva à Noruega aconteceu há quase 35 anos. O actual Presidente era, então, ministro das Finanças e do Plano do Governo AD liderado por Sá Carneiro. Havia alguma tensão no ar. Os dois países viviam, há já vários séculos, de uma relação comercial muito concreta: o bacalhau. O problema, em 1980, era a imposição, pelo Governo português, de limites à importação daquele peixe. Em Ålesund, onde à época participou num almoço, Cavaco lembra-se de ter ouvido uma frase, que agora repete: “Os cidadãos não toleram nenhum Governo que não autorize a importação de bacalhau.”

A questão não chegou a pôr-se, porque ainda antes do Natal o Governo sofreria o abalo de Camarate, com a morte do primeiro-ministro e do ministro da Defesa. Em Janeiro de 1981, Cavaco deixaria a pasta para Morais Leitão. Da Noruega, então, ficou-lhe uma memória: para interessar os media locais pela sua visita teve de segurar num bacalhau para a fotografia. Hoje, como Presidente, tem abertas as portas do Palácio Real e a oportunidade fotográfica está garantida. E o bacalhau pode ser apenas uma linha, de passagem, no discurso de Cavaco.

Foi assim no primeiro acto oficial desta visita, em Oslo, esta segunda-feira. No Conselho para a Investigação Científica da Noruega, um edifício novo, inaugurado há menos de um ano, o Presidente da República defendeu que “a Noruega e Portugal podem desempenhar um papel de liderança na Europa” no “domínio das ciências do mar”. E exemplificou. Na energia, “incluindo a energia offshore”, pode e deve haver “cooperação” entre os dois países, uma vez que Portugal se prepara para “iniciar um processo de prospecção de combustíveis fósseis” em áreas costeiras. A Noruega, recorde-se, é um dos maiores exportadores de hidrocarbonetos e com as suas receitas alimenta o maior fundo soberano do mundo, que gere mais de 600 mil milhões de euros.

Mas nem só da promessa de petróleo vive a energia portuguesa (nem a norueguesa, aliás, que tem uma grande utilização de renováveis). Cavaco Silva deu como exemplos de cooperação “os parques eólicos flutuantes” e as “unidades de produção de macroalgas para biocombustíveis”.

De facto, a investigação científica portuguesa em biotecnologia marinha é o grande cartão-de-visita desta viagem à Noruega. Por isso, o Presidente confidenciava aos jornalistas, durante a viagem, que os preparativos se iniciaram “há nove meses”: “Nunca viajei com uma delegação tão importante de cientistas e empresários. Esta é talvez uma das viagens mais importantes que faço.”

A Noruega leva alguma vantagem na rentabilização das potencialidades da “economia azul”. Torbjørn Røe Isaksen, o ministro da Educação, tem por garantido que o seu pelouro, a investigação científica, será a “principal prioridade de investimento no futuro próximo”. Nuno Crato, o seu homólogo português, não pode prometer o mesmo. Ambos assinaram uma “carta de intenções” para estreitar laços de cooperação.

Mais concreto foi o memorando de entendimento assinado entre os responsáveis científicos dos dois países, Hárvid Hallén e Arménia Carrondo, da FCT, sobre “cooperação científica e tecnológica relativa aos oceanos”. Cavaco considerou os dois acordos como “passos importantes”. “A nosso ver, a Noruega é claramente um parceiro desejável.”

Os objectivos de Cavaco passam por fazer crescer a pequena “economia do mar” portuguesa, transformando-a “numa fonte económica sólida para o país”. À semelhança do que Tiago Pitta e Cunha, o consultor do Presidente para o Ambiente, Ciência e Mar, considera ser o “paradigma” norueguês.

“A Noruega tem amplos recursos piscívoras e nós temos uma grande variedade de recursos marinhos com uma biodiversidade inigualável na Europa”, garantiu Cavaco Silva. “Unindo esforços”, conclui o Presidente português, “Portugal e Noruega conseguirão alcançar muito mais do que se trabalharem separadamente”.

As duas ministras responsáveis pelas pescas concordaram. Elisabeth Aspaker defendeu que “no futuro procuraremos nos oceanos por comida, energia e medicamentos. Mas para isso precisamos de aprofundar o nosso conhecimento sobre os oceanos.” Assunção Cristas lembrou que foi precisamente em Oslo que se iniciou o “road-show marítimo” com que o Governo português pretende atrair a Lisboa, em Junho, o maior número possível de interessados na “economia azul”. A “semana azul” que Lisboa vai acolher, declarou Cristas, quer ser uma “referência inspiradora” nesta área.

Já sem a solenidade dos discursos oficiais, o palco foi entregue aos cientistas dos dois países, que já têm uma experiência conjunta em mais de 900 projectos de investigação.

Cavaco Silva dirigiu-se, então, para o Palácio Real, onde foi recebido pelo Rei Harald V. Durante o dia, o Presidente português terá um encontro com a primeira-ministra norueguesa e participará na inauguração de uma exposição dedicada ao arquitecto português Álvaro Siza Vieira.

Mas a viagem tem um propósito marcado: pôr o “conhecimento” norueguês a trabalhar em conjunto com os “recursos” naturais portugueses, explicou Cavaco Silva. Por isso, em dez intervenções previstas para estes quatro dias de viagem, sete serão dedicados à economia do mar. E é mais provável haver referências a robôs de exploração do fundo do mar e a novas patentes da indústria de cosmética que aproveitam propriedades de algas açorianas do que ao eterno bacalhau, que marcou a primeira visita de Cavaco à Noruega.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários