No país do baile, o fado é música para escuchar

A Colômbia é o país da salsa, não está para nostalgias. Há sempre excepções. O fado corre no sangue de uma pasteleira colombiana.

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Katia Guerreiro, que integra a comitiva portuguesa presente na FILBo, vai cantar La gota fría Pedro Ferreira

Uma música de acordeão atravessa as ruas vazias da zona norte de Bogotá na quinta-feira à noite. “Moralito, Moralito se creíaaa que él a mí, que él a mí me iba a ganar” Qualquer colombiano conhece a canção, um vallenato composto em 1938 que é uma espécie de hino não-oficial do país. Mas acontece que no carro onde se escuta La gota fría só há portugueses.

Desde que chegou à capital colombiana, há uma semana, a fadista Katia Guerreiro está a tentar memorizar as letras da canção. Dois dos músicos que a vão acompanhar no concerto que vai dar este sábado à noite no Teatro Jorge Eliécer Gaitán escutam La gota fría pela primeira vez mas captam a melodia instantaneamente, como quem fotografa. “Lá maior...Mi menor”, diz Francisco Gaspar, baixo acústico. “Há momentos em que ele vai a sol e vai a dó”, nota, segundos depois, Pedro Castro, guitarra portuguesa. “E isto não vai acontecer.”

Katia Guerreiro gosta de citar uma frase que uma vez ouviu do maestro António Victorino d’Almeida: “Tudo pode ser fado, mas fado não pode ser tudo”. A fadista tem feito por provar a primeira parte desse veredicto. Há cerca de um ano, cantou Não me toca, de Anselmo Ralph, num programa de televisão (“Tu disseste que eras inocente, baby / E não eras esse homem que dizias ser...”). Recentemente, numa digressão pelo México, fez audições a grupos de mariachis que actuam nas ruas para tocarem Cielito lindo nos seus concertos. “Era o final do espectáculo: entravam os mariachis a tocar e eu cantava com eles”, conta a fadista.

Katia Guerreiro, que integra a comitiva portuguesa presente na Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBo), vai cantar La gota fría esta noite de sábado, no final do seu concerto, o primeiro na capital colombiana.

“Quando chego a um país pela primeira vez gosto de fazer isto: cantar uma música emblemática, tradicional, desse lugar. Um pouco como uma retribuição do carinho que recebemos do público. Como quem diz: Nós também estamos convosco. E isto aprendemos com a Amália, evidentemente.”

Fado no sangue
Dois dias antes, Katia deu uma masterclass sobre fado na Universidade de Los Andes. Em vez de sublinhar a identidade nacional do fado, insistiu em apresentá-lo com uma música do mundo. “Tem uma força que consegue abrir os corações de um povo tão formal como o são os japoneses”, disse. “O fado tornou-se uma canção pelo mundo e de todo o mundo. Cantamos em salas com dois mil, três mil espectadores.”

O panorama mudou muito nos últimos anos. “As pessoas em Portugal não fazem ideia. Devem achar que cantamos para as comunidades portuguesas”, nota Katia Guerreiro, já depois da sua aula de fado.

Há quem aprenda português por causa do fado, diz. Uma japonesa procurou-a no final de um concerto, trazendo as letras dos seus fados com a fonética japonesa anotada por cima: será que Katia podia ajudá-la a articular melhor os sons? Uma mezzo-soprano espanhola, intérprete de Rossini, Mozart e Bizet, pediu-lhe que a ensinasse a cantar fado (antes de, aparentemente, concluir que não era capaz). Um irlandês viajou para Berlim para vê-la cantar.

“Fado, para mim, é algo de que uma pessoa se apropria. Não é uma coisa a que simplesmente assistes enquanto espectador”, diz Julia Sosnitsky, uma colombiana de 33 anos que esteve presente na masterclass de Katia Guerreiro. “Creio que tem a ver com a genética e a história de cada um. Gosto muito de música africana, mas não a sinto no meu sangue. O fado, sim.”

Na Colômbia, a música é para bailar. “A Colômbia não é um país triste e não entende a nostalgia”, diz Julia, mas ela é filha de argentinos, e a Argentina, “sí, es muy nostálgica”. 

Descobriu o fado com o pai, amante de tango, a quem mandou um sms durante a masterclass, citando Katia Guerreiro: “O fado é uma música que cura almas por todo o lado”. O pai confirmou: “Seguro!!!”

Julia estudou artes plásticas e música na Universidade de Los Andes. Depois foi para a Argentina aprender cozinha. Hoje é uma das sócias de uma pastelaria cosmopolita na zona norte de Bogotá, Les Amis Bizcochería. “Não me tornei música porque não quis. Não queria fazer do que mais gostava uma obrigação”, explica. A Colômbia não tem uma canção nacional: cada região tem a sua música, da mesma forma que cada região tem o seu clima e a sua paisagem. E as diferenças de classe, num país visivelmente “sectorizado”, como diz Julia, manifestam-se nas preferências musicais dos colombianos. O vallenato, por exemplo, é um género muito popular entre os estratos mais baixos (de origem indígena, rural), mas é desprezado pelas classes mais altas (brancos, de ascendência europeia).

Os colombianos terão sempre a salsa. “Talvez seja a menos estratificada. Em todas as partes do país se ouve salsa. Há grupos muito jovens, que a estão a modernizar”, explica Julia.

É, então, a música nacional da Colômbia?

“No sentido de que toda a gente gosta, mas não que as represente.”

O vallenato também é música para bailar. Mas esta noite de sábado há-de ser fado. Música para escuchar.

O PÚBLICO viajou a convite da agência Invest In Bogotá e da Embaixada de Portugal em Bogotá

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