Viajar no tempo para jogar The Shining

Um dos clássicos do cinema foi adaptado a um breve videojogo gratuito. Heere’s Johnny em 1980.

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The Shining, adaptação cinematográfica do livro de Stephen King, não devia precisar de desculpas para ser revisitado. Pela maioria elevado a clássico, tem tantas nuances que é praticamente impossível espraiar a nossa atenção por todas de um assento só. Mas se forem precisas desculpas para rever o toque de Stanley Kubrick numa das suas mais icónicas peças, o jogo Let's Play: The Shining está nesse lote de ignições.

Não tem gráficos de última geração nem uma sonoplastia gravada num estúdio; não demora mais de duas dezenas de minutos. E para o que se propõe, não precisa. Criador por Pippin Barr, a obra é jogada no browser onde provavelmente estão a ler este texto e não, não custa um único euro. O filme chegou aos cinemas em 1980; a Atari 2600 chegou ao mercado europeu em 1978. Segundo o próprio Barr, é como se o jogo tivesse acompanhado o lançamento do filme “parecido com o que aconteceu com E.T.”.

Esperem portanto píxeis granulados, uma música que bebe directamente do filme e apresentada em um ou dois tons que ecoam nos ouvidos como se os tímpanos tivessem parado há algumas décadas ao som de um Kavinsky despojado de tudo, ficando apenas o osso das suas batidas. Os mais velhos saberão exatamente o que têm pela frente; os mais novos, mesmo que estejam habituados a máquinas do novo milénio, não deixem de o experimentar para testemunharem como isto dos videojogos era perto da sua génese.

Obviamente, os minutos de Let's Play: The Shining serão melhor aproveitados por quem já viu o filme. É o meu caso: já tinha visto o filme: joguei este shot de nostalgia e revi a película. No mínimo, é interessante como a essência das cenas discutivelmente mais marcantes foi captada; como esta roupagem as aprimora com o visual sem luxo e como são identificáveis, possivelmente despoletando um sorriso em quem associar as duas obras.

Os comandos são simples: as quatro teclas que têm no vosso teclado com outras tantas setas e o espaço - é apenas isso. E, como seria de esperar, os primeiros segundos são dedicados à chegada ao hotel enquanto conduzimos o carro por uma estrada que corta a paisagem verde e acaba por ser ladeada pelo representar branco da neve. É assim que o filme começa: com aquela estrada ao lado do dorso de água; com aquele Beetle amarelo.

Sim, a cena do elevador está lá para percebemos imediatamente os píxeis que ilustram as duas portas e o sangue que inunda o cenário e a nossa memória. Um flash com a palavra Redrum que já todos aprendemos a ler da direita para a esquerda; Wendy e Danny passeiam-se pelo labirinto jardinado que Jack vê em miniatura. E por falar no nome Jack - Torrance e Nicholson, deste então indissociáveis - vemos o protagonista a atirar a bola de ténis pela sala e a escrever mecanicamente na máquina a frase que compõe uma das cenas mais icónicas: “All Work and no play makes Jack a dull boy” e, tal como no filme, também aqui existem gralhas.

Este trecho do jogo é particularmente interessante porque as palavras vão enchendo o ecrã ao ritmo que vamos pressionando as teclas do nosso teclado. Talvez tivesse sido ainda mais interessante se tivéssemos que soletrar cada palavra, mas ainda assim ajuda a fazer a ponte entre jogador e personagem do jogo/filme.

Outras cenas não podiam deixar de estar representadas: com as escassas teclas que temos à disposição controlamos Danny pelos corredores até encontrar as gémeas, assim como Wendy munida de um taco de basebol, sabem, quando está nas escadas a lutar contra a percepção que já nem tudo é o que parece. Obviamente, Jack tenta arrombar a porta - aquela porta - à machadada até por entre a madeira dizer as palavras que seriam - e são - uma das imagens de marca do filme.

O esquema de controlos é curioso: o movimento do machado é entregue ao jogador e cada seta representa um quarto de círculo, ou seja, temos que rodar os nossos movimentos para que Jack dê uma volta completa com o machado antes de lascar mais uma ripa à porta. E para evitar que este texto seja pouco mais que uma mera descrição, permitam-me, sem estragar nenhum pormenor, escrever que o jardim cobre-se de neve e que Jack por lá deambula cada vez mais lento.

Como podem ler, em poucos minutos estão condensadas várias cenas, o que deixa prevalecer a sensação que estamos perante um sumário do filme em jogo retro. Isso é verdade, contudo, pessoalmente, isto resultou no seu reconhecimento e no adensar da curiosidade em atualizar a memória com o contexto de cada representação: recordar o que no filme levou até estes segundos e sorrir por colecionar mais alguns pormenores de uma obra incontornável do cinema.

Então é isto: uma breve e legítima desculpa para recordar ou ir descobrir o filme; para perceber que uma película de terror não tem que assustar quem vê com truques imediatos e tantas vezes a saber a baratucho, não é preciso, basta deixar-nos a ferver com a tensão acumulada e ocasionalmente dar uma ligeira folga à válvula de escape. E mesmo que cheguem ao final de Let's Play: The Shining a detestar o que acabaram de experienciar não há grande problema: não terão desperdiçado muito do vosso dia e a carteira permanece intacta. Se gostarem, vejam ou revejam Kubrick em ação — acredito não perderão nada com isso. E não se esqueçam que o livro de King esteve na sua origem.

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