Não é o mito e não é exactamente o homem, é Kurt Cobain

O documentário Cobain: Montage of Heck conta a história que conhecemos do vocalista dos Nirvana com uma proximidade desarmante. A partir desta quinta-feira em exibição em vários cinemas.

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O músico numa das imagens de Cobain: Montage of Heck
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O músico na adolescência em Cobain: Montage of Heck
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Uma animação em Cobain: Montage of Heck
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O músico a acamparCobain: Montage of Heck
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Cobain: Montage of Heck

Se tivéssemos visto as imagens iniciais apenas depois de passar por aquelas que surgem na última parte de Cobain: Montage of Heck, não conseguiríamos manter o sorriso cândido e enternecido que elas nos provocam. No início, vemos Cobain antes de tudo, criança de dois anos muito loura e muito sorridente, a correr pela casa, a falar para a câmara, a receber uma guitarra – o futuro está já ali.

Quase no fim, depois da adolescência turbulenta, da salvação na música, da ambição e do talento o terem conduzido ao estrelato global, depois do casamento com Courtney Love e do nascimento da filha Frances Bean Cobain, vemos um pai carinhoso, mas minado pela heroína, com o rosto ferido e macerado pela dependência, a tentar manter-se acordado enquanto segura a filha de um ano. É doloroso, desolador.

Na verdade, Cobain: Montage of Heck diz-nos pouco que já não soubéssemos (além, entenda-se, de curiosidades como uma versão acústica de And I love her, dos Beatles). Kurt Cobain é um dos mitos rock sobre os quais mais se escreveu e cuja vida foi mais investigada. Já tínhamos lido e ouvido, mas não tínhamos visto. Permitir-nos ver é a grande revelação do documentário, o primeiro produzido em colaboração com a família de Kurt Cobain (Frances Bean é produtora-executiva), que o americano Brett Morgen realizou depois de mergulhar nos arquivos pessoais do vocalista dos Nirvana e de entrevistar amigos próximos (Kris Novoselic, baixista dos Nirvana, e a primeira namorada de Cobain, Tracy Marander) e familiares (a viúva, Courtney Love, a mãe, Wendy O’Connor, o pai, Don Cobain, ou a irmã, Kim Cobain).

Cobain: Montage Of Heck será exibido até 25 de Abril, em sessões diárias únicas (21h30), nos Cinemas NOS Colombo (Lisboa), Norteshopping (Matosinhos), Fórum Algarve (Faro), Marshopping (Leça da Palmeira), Vasco da Gama (Lisboa), Oeiras Parque, Dolce Vita Coimbra, Glicínias (Aveiro) e Arena Shopping (Torres Vedras). No Cinema Medeia Monumental, em Lisboa, estará em exibição em duas sessões diárias (19h30 e 22h15) até 29 de Abril. Os cinemas UCI Arrábida (Porto), UCI El Corte Inglés (Lisboa) e UCI Dolce Vita Tejo (Amadora) irão exibi-lo até dia 26, com sessões diárias às 21h30, dias 23 e 24, e às 19h, dias 25 e 26. Os bilhetes para todas as sessões têm o preço de 10€.

Em Unseen Cobain, obra de Charles R. Cross, já tínhamos viajado pelo imaginário, ora nostálgico, ora grotesco, da produção artística de Kurt Cobain (as colagens, as pinturas, os diários) e pelas imagens humanizadas do mito (as fotos de infância e adolescência, as imagens dos bastidores do estrelato). No documentário About a Son, de AJ Schnack, criado sem recurso a qualquer imagem de arquivo a partir de 25 horas de entrevistas ao líder dos Nirvana, tínhamos aprofundado a biografia e, principalmente, o contexto que agora também é revisitado: o crescimento em Aberdeen, a infância marcada por um divórcio traumatizante, o atravessar dos anos Reagan numa América que perdera a inocência. São apenas dois exemplos de produção bibliográfica e cinematográfica dedicada a Kurt Cobain, mas servem para ilustrar o ponto. Cobain: Montage of Heck, não é a história definitiva e nunca contada. Brett Morgen defende que o filme nos permitirá “conhecer Kurt Cobain pela primeira vez”, mas falha o alvo. Não é essa a virtude do filme que realizou.

Em ordem cronológica, Montage of Heck conta toda a história mantendo o foco em Cobain. Mostra-nos as imagens da infância e recria a adolescência passada de casa de familiar em casa de familiar (nenhum deles parecia conseguir aguentar muito tempo aquele rapaz depressivo e revoltado), quer através dos depoimentos dos familiares, quer pela recriação em animação daquilo que o próprio Cobain vai contando. Mostra-nos o empregado de limpeza (o único emprego que manteve, para além de músico) que passava os dias em casa a compor, a escrever abundantemente nos seus cadernos (porta de entrada directa nos seus pensamentos mais íntimos) e a pintar ou a criar esculturas a partir de brinquedos da infância (porta de entrada no imaginário que os Nirvana revelariam).

Ouvimos a música desde os inícios, numa pequena sala de ensaio em Olympia, até aos grandes palcos, quando ironiza com o seu próprio estatuto, como quando entra no imenso palco do Fesitval de Reading, em Inglaterra, numa cadeira de rodas, passando por esse período intermédio em que eram banda independente a afirmar-se através das canções corrosivas mas com travo pop cativante (a versão ao vivo de Love buzz ouvida no filme é particularmente inspiradora).

Ao longo de duas horas e um quarto atravessamos todo o tumulto. O sucesso desejado que, após a euforia inicial, não se mostrou tão saboroso quanto imaginado, as dores crónicas de estômago que terão provocado o refúgio na heroína (“canto do estômago, onde dói”, diz a determinado ponto), a relação com Courtney Love, sempre sob fogo mediático, vista em gravações caseiras ora ternas, ora decadentes, sempre patetas. Nada disto é novo, repetimos. Já o lemos descrito e já vimos a informação biográfica ser alvo de reflexão e de especulação. Mas nunca o tínhamos visto assim, com a voz, as imagens, os excertos dos diários ou a arte gráfica a colocarem-nos tão próximos do objecto filmado - demasiado próximos, pensamos mais que uma vez quando o filme se encaminha para o final.

Qualquer admirador dos Nirvana quererá ver este filme, tal como qualquer pessoa minimamente interessada na história da música popular urbana recente, na qual os Nirvana e Kurt Cobain sobressaem com destaque assinalável. Uns e outros sairão da viagem pelos 27 anos biografados em Cobain: Montage of Heck com uma inevitável sensação de angústia a macular a celebração de uma personalidade tragicamente fascinante que foi também um músico de génio. Esta é, afinal, e o filme acentua-o bem, a história de uma vida quase feliz. Com um final muito triste. 

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