Retidos e refugiados

O Mediterrâneo é um mar de mortos ou a passagem mais directa para um “campo de retenção”. Na Europa, surgem por todo o lado os lugares de retenção, qualquer área pode ser convertida em campo (um campo desportivo, instalações industriais desactivadas, o corredor de um aeroporto, etc.), isto é, num espaço anómico, uma zona cinzenta posta à margem da ordem jurídica normal, onde se dá a intersecção do Estado de direito com aquilo que atenta contra ele. Em suma: onde tudo é possível. O “campo de retenção” funciona como uma plataforma preparatória de expulsão dos estrangeiros indesejáveis e, sobre o que lá se passa, os Estados europeus preferem guardar silêncio ou, quando se vêem obrigados a falar, usam o eufemismo dos “danos colaterais” de uma política necessária de “controlo dos fluxos” de imigrantes para garantir a segurança. Esta figura do “retido”, o ocupante do “campo de retenção”, é recente — pelo menos, na dimensão que tem hoje — e ainda não ganhou o estatuto político do refugiado. Nem tão-pouco ganhou o estatuto de categoria onde é possível apreender uma das configurações do nosso tempo. Quando Hannah Arendt, em 1943, escreveu um texto que tinha como título We Refugees, publicado numa revista judaica de língua inglesa, ela não só universalizou o refugiado, como o definiu como “a vanguarda do seu povo”. Como o proletariado para Marx, o refugiado foi para Hannah Arendt um novo sujeito da História. Em última análise, Hannah Arendt deu legitimidade a uma nova palavra de ordem que poderia ser assim formulada: “Nós somos todos refugiados”. A condição universal de refugiado corresponderia assim à realização do que o poeta italiano Francesco Nappo escreveu num poema: “La patria sarà quandotutti saremo stranieri”. Mas Hannah Arendt deteve-se sobretudo no que a figura do refugiado revelava potencialmente e efectivamente: a necessidade de superar os direitos humanos, tal como eles estavam estabelecidos, porque se tinha tornado evidente que os indivíduos, quando destituídos de cidadania, isto é, quando não pertencentes a nenhum Estado nacional ou quando, para fugir a perseguições e ameaças, fogem para um outro Estado, perdem também a protecção e as imunidades consagradas na declaração dos direitos humanos. A consequência a retirar deste texto de Hannah Arendt sobre os refugiados e de outros sobre o judeu como pária (e foi isso que fez um dos seus leitores, Giorgio Agamben) é a de que sem o pressuposto da cidadania os direitos humanos são uma declaração vazia. O direito adquirido pelo nascimento e pela pertença a um Estado é o último reduto do Estado-nação, cuja sobrevivência já só pode ser assegurada por este factor biopolítico. O retido, para além de estar na base do regresso e da proliferação do “campo” na Europa, sob outras condições (o campo, hoje, já não precisa de estar retirado dos lugares públicos e pode ser instituído e administrado em todo o lado), corresponde a uma outra etapa da moderna política estatal. O retido não substituiu o refugiado. Este continua a multiplicar-se numa altura em que se tornou evidente que a guerra civil mundial é a forma comum da guerra contemporânea. E esta guerra deu origem ao “campo de refugiados”, que é outra modalidade do “campo de retenção”, mas com um objectivo comum: não deixar que o “refugiado” adquira qualquer qualidade política proveniente de um direito de cidadania. Refugiados e retidos tendem assim hoje a confundir-se porque ambos estão devidamente enquadrados por uma política de exclusão e segurança que os obriga a regressar coercivamente ao lugar onde estão votados à morte.

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