Oficina poética do desgosto e do ciúme

As letras de Romance(s), novo disco de Aldina Duarte, pertencem por inteiro à poetisa Maria do Rosário Pedreira, que se aproximou da fadista por via de uma afinidade literária.

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Maria do Rosário Pedreira estreou-se no fado com uma letra para Carlos do Carmo: “Temos de nos pôr no lugar de quem canta” Nuno Ferreira Santos

Da primeira vez que entregou uma letra sua a um fadista, a reacção não fez eco do entusiasmo que Maria do Rosário Pedreira desejava encontrar. “Não canto isto porque vê-se logo que é de uma mulher”, disse-lhe Carlos do Carmo. Não era uma questão sexista, mas uma lição que a escritora, próxima do fadista desde miúda, havia de guardar daí em diante como uma regra de base: “Percebi que temos de nos pôr no lugar de quem canta, porque se não não é credível, não cola”, refere a autora ao Ípsilon. “Os fadistas para quem escrevo obrigam-me a esse exercício de invenção e isso é muito engraçado.”

Poetisa e editora do grupo Leya, Maria do Rosário Pedreira passaria a ser uma autora regular de letras para fado desde a primeira participação com Pontas soltas no álbum À Noite, precisamente de Carlos do Carmo, disco em que o fadista partia para interpretações de temas tradicionais munido exclusivamente de textos contemporâneos. Desde logo, ficava estabelecida uma das imagens mais fortes na sua poesia e na sua escrita de letras: a marca do ciúme, da traição, de uma ferida aberta no centro da conjugalidade.

Esse universo temático nunca foi tão longe quanto em Romance(s), novo álbum de Aldina Duarte. Ao escrever um romance na forma de disco, com cada um dos temas a fazer avançar a narrativa encadeada de um triângulo amoroso, Maria do Rosário Pedreira concretiza uma ideia que diz ter nascido muito naturalmente entre as duas: “Apesar de nos termos conhecido por causa do fado, aquilo que mais me aproximou da Aldina e nos tornou mesmo amigas foi a afinidade da literatura.” Depois da experiência anterior em Contos de Fados, em que Aldina pedira a vários letristas que escrevessem a partir de obras literárias – Pedreira ocupou-se do mito de Orfeu e Eurídice, do conto A Bela e o Monstro e da fábula O Pastor e o Lobo, de Esopo –, a letrista convenceu-se de que esta seria “sequência natural”.

“Os meus poemas acabam por ser também narrativas, muitas vezes com personagens, normalmente só duas, com princípio, meio e fim”, analisa Maria do Rosário Pedreira, assumindo pois a atracção por “esta espécie de cantata”, uma história que se alonga por 14 fados e “que só faria para uma pessoa como a Aldina porque ela percebe o que é um romance”. Após essa ideia inicial, Maria do Rosário esboçou a narrativa livremente, ainda que de acordo com um figurino técnico pedido pela fadista: “a história teria de ter uma introdução e uma conclusão que tivessem que ver com ela, com a narradora”, e obedecer a uma diversidade de melodias e rimas dos fados tradicionais. “Havia uma espécie de gráfico de momentos-chave da história, do meu lado, e de melodias, do lado da Aldina, que fomos depois trabalhando à medida que eu escrevia”, explica.

O lado oficinal
A escrita para fado distingue-se da sua produção poética precisamente pelo lado oficinal, de se colocar voluntariamente em espartilhos, respeitando métricas, rimas, numa construção de recorte clássico que a remete, em parte, para os poemas de adolescência. “Costumo dizer que a minha poesia não vem quando eu quero, vem quando ela quer”, diz a poetisa, assumindo a sua condição bissexta ao não forçar a mão. “Com o fado não. Vem um fadista e pede-me uma letra. Eu vou para o sofá e faço-a. Vejo as letras muito mais como um trabalho do que a poesia, que é mais do domínio do criativo puro e duro. Aliás, não gosto nada de fazer letras por fazer. Gosto quando uma pessoa me pede, eu conheço a pessoa, oiço o que ela canta e faço para ela.”

Por isso, ao conhecer profundamente intérpretes como Aldina Duarte e António Zambujo, Maria do Rosário Pedreira permite-se arriscar em sentidos diferentes. Com Aldina, estica o registo até resultar em letras mais elaboradas, que exigem uma intérprete que saiba “parar nos momentos certos” para permitir ao público digerir os versos sem se perder na história que está a ser cantada. No caso de Zambujo, descobriu que podia explorar “coisas mais malandras”, como o exemplificam Flagrante ou Barata tonta, fugindo à sua tendência para escrever textos mais tristonhos, os tons naturais também da sua poesia. “Foi uma descoberta ao ouvir e ver o António em palco, porque ele está muito à-vontade. Fiz o Flagrante para ele mas estava um bocadinho de pé atrás. Então escrevi-lhe a medo e disse: ‘Tenho aqui uma coisa meio marota, mas não sei se vai gostar’. Ele adorou. Só que que o António não vai cantar sempre a mesma coisa e já tenho na minha cabeça algumas ideias mais sérias para ele, se quiser continuar a contar comigo.”

Cantada habitualmente pelos intérpretes já referidos, Maria do Rosário Pedreira escreveu também para o último álbum de Ricardo Ribeiro depois de este lhe pedir “uma dessas letras de desgosto” que confessava admirar. “Há pessoas que se identificam com esse lado menos de sair por cima, essas coisas de enaltecer o desgosto e a memória do que correu mal.” Algures em Romance(s) ouve-se a voz de Aldina soltar um “quanto mais triste mais canto”. “Artistas como ela queimam muito os seus demónios naquilo que fazem”, acredita. E está também a falar de si, da escrita como ferramenta para se “limpar de algo que [lhe] está a fazer mal”.

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