O nazismo e a “música degenerada”

Programar um ciclo dedicado à “música degenerada”, como agora na Casa da Música, é um gesto da máxima importância

Com a chegada ao poder, em 1933, e sobretudo, pouco depois, com os plenos-poderes de Hitler consagrado como Führer, o nazismo pôs em obra um empreendimento sem paralelo, que não passou apenas pelo fim das liberdades políticas e de expressão, mas também pelas leis raciais, as perseguições, detenções, internamentos em massa nos campos de concentração, por um projecto de organização total e totalitário.

Concomitantemente construiu-se e tentou-se de modo sistemático pôr em prática um culto da “raça pura”, edificando uma ideologia e uma narrativa mitológica, em todas as suas vertentes e manifestações, incluindo artísticas e culturais, pelo que qualquer “desvio”, qualquer diferença ou alteridade, era encarado – e, em consequência, perseguido - como uma “aberração” ou “degenerada”, termos grosseiramente extrapolados de práticas clínicas de então.

O nazismo era anti-semita (como nunca antes na longa história do anti-semitismo), racista (excluindo outras manifestações de diferença, nomeadamente de origem africana e negra), anti-comunista e anti-moderno.

Diferentemente do fascismo italiano, que na sua génese comportava uma vertente modernista, de matriz futurista, o nazismo foi anti-modernista e reacionário, em sentido estrito do termo, ou seja, reactivo a qualquer elemento que não se enquadrasse na “pureza” rácica e cultural da sua narrativa ideológica e mitológica. O anti-comunismo e o anti-modernismo conjugaram-se na “guerra cultural” a um “bolchevismo artístico”, além, óbvio, de toda a suspeita de “judaísmo em arte”, glosando os termos do panfleto anti-semita de Richard Wagner, O Judaísmo em Música.

Entartete Kunst/Arte Degenerada foi o título de uma exposição que os nazis organizaram em Munique, em 1937 – numa máquina de propaganda sem precedentes, a lógica era não apenas a de reprimir e proibir mas também a de exibir, visando a histeria de massas, as manifestações e expressões “abomináveis”. No ano seguinte, em Dusseldorf, ocorria outra exposição, a de Entartete Musik/Música Degenerada.

A documentação desse evento esclarece o que os nazis estabeleciam como exemplos “a eliminar, em sete secções: 1) A influência do judaísmo; 2) Arnold Schönberg; 3) Kurt Weill e Ernest Krenek, 4) “Bolchevistas menores”, como Franz Schereker e Alban Berg; 5) Leo Kestenberg, director da educação musical até 1933; 6) As óperas e oratórias de Paul Hindemith, 7) Igor Stravinsky (o qual, sendo russo exilado e anti-bolchevique, protestou vivamente, não compreendendo porque estava incluído nessa exposição, enquanto um Béla Bartók, anti-nazi, reclamava que também ele devia estar incluído).

O cartaz da exposição não era mais uma das infames caricaturas anti-semita, mas sim a figura de um negro tocando saxofone, embora com a “estrela de Davide”, o símbolo racista que os judeus eram obrigados a usar.

A razão não era apenas o preconceito rácico em geral, mas também outra mais concreta: anatemizar o jazz, objecto de uma enorme voga na Alemanha da República de Weimar, na Berlim dos anos 20 em particular, e a sua influência em obras de Weill e Krenek – sobretudo com o imenso sucesso de Jonny spielt auf (1927) de Krenek, singular caso de ópera imbuída de elementos de jazz.

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Cartaz da exposição Música Degenerada, 1938 DR

Juntamente com o cinema, a música foi uma arte de primeira importância no imaginário nazi, desde logo pela matricial influência de Wagner. A música surgia como expressão suprema de “arte alemã”, retomando os termos de Os Mestres Cantores de Nuremberga de Wagner. Houve uma “mitologização” da “arte alemã” da música, construindo um panteão com os mestres antigos e Bach, e três expoentes, Wagner claro, mais Beethoven e Bruckner. De Beethoven, o “Titã” glosado por toda a tradição liberal e humanista, e inclusive marxista, apropriou-se em particular logo a tida como “Ode à Humanidade”, a Nona Sinfonia. Quanto a Bruckner, não sendo até despicienda a comum origem na Alta Áustria, em Linz, Hitler como que se “identificou” com ele, tendo ido homenageá-lo na Valhala, nome da morada dos deuses na mitóloga nórdica e em O Anel do Nibelungo de Wagner, por isso também designação de um panteão que o nazismo edificou.

A contrapartida foi a condenação e proibição da “música degenerada” e o exílio de tantos compositores e intérpretes que eram expoentes da arte da música na Alemanha e na Áustria, como tantos e tantos artistas e intelectuais e milhares e milhares de pessoas, sobretudo judeus. Mas nem todos tiveram esse destino.

Franz Schreker, por exemplo, era dos autores mais importantes; as suas óperas eram tanto ou mais famosas que as de Richard Strauss; basta conhecer Os Estigmatizados(1918) obra-prima portentosa! Demitido das suas funções docentes em Berlim por ser de origem judaica, ainda veio de férias ao Estoril. Numa dramática correspondência com Vianna da Mota implorou-lhe um lugar de professor no conservatório de Lisboa, o que não era possível de obter pelo pianista. Morreu em Berlim, em Março de 1934.

Outros, como Boris Blacher ou Walter Braunfels optaram por um silencioso “exílio interior”. O caso mais extraordinário foi o de Karl Amadeus Hartmann (1905-63), exemplo ético ímpar, publicamente silencioso mas anti-nazi, autor de obras memoriais desde o Miserae (1933/34) “para os meus amigos mortos em Dachau”. E houve aqueles, austríacos e checos, que morreram nos campos, Viktor Ulmann, Erwin Schulhof, Pavel Haas, Hans Krása. Também no tocante à música o nazismo foi uma tragédia sem precedentes.

E é obrigatório motivo de reflexão constatar que, com a notória excepção de Schönberg, estes autores foram “duplamente punidos” pela História, banidos pelo nazismo, primeiro, “esquecidos” na narrativa do canône construída no pós-guerra e assim permanecendo, fora da Alemanha, ausentes das salas de concerto.

Programar um ciclo dedicado à “música degenerada”, como agora na Casa da Música, no módulo de “Música e Revolução” por volta de 25 de Abril, é um gesto da máxima importância, que merece toda a atenção.

Mas vejamos o programa: que mais hipótese temos de ouvir peças de Krenek, Schreker, Korngold ou Hindemith, mesmo Zemlinsky, Eisler ou Weill? Não os “deixámos” afinal encerrados noutra espécie de “gueto”? E isto é mesmo motivo de séria reflexão.

Enfim, ouça-se, descubra-se, o Berliner Requiem de Brecht/Weill, a Sinfonia de Câmara e sobretudo a extraordinária Abertura de Os Estigmatizados de Schreker!

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