Doutoramentos tomam lugar que foi dos mestrados até Bolonha

Especialistas dizem que há três tipos de pessoas a engrossar números de doutorados: os que querem fazer carreira académica, os que não têm outras possibilidades de emprego e os que querem valorizar-se profissionalmente.

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Ao banalizar o mestrado, Bolonha promoveu o doutoramento João Silva

Em praticamente uma década, o número de doutorados em Portugal mais do que duplicou. Em 2003 eram 11.197, passando a 24.992, em 2012. Este fenómeno deve-se, por um lado, a uma opção política, que aumentou o financiamento para bolsas de doutoramento, mas também resulta do processo de Bolonha. As novas licenciaturas de três anos e os mestrados perderam valor no mercado de trabalho, e há cada vez mais pessoas a doutorarem-se para valorizarem o currículo.

“O doutoramento aparece como alternativa para combater uma certa desvalorização das licenciaturas e, sobretudo, dos mestrados no pós-Bolonha”, explica a socióloga da Universidade do Minho Emília Araújo, que tem feito investigação sobre o tema. “Os mestrados hoje em dia já não são diferenciadores”, concorda Filomena Parada, vice-presidente da Eurodoc, a associação europeia de jovens investigadores e doutorandos.

Há pouco mais de uma década, terminar um doutoramento era “uma prova de maturidade científica”, diz Emília Araújo, um ponto alto na carreira de um académico. Agora é “um ponto de partida”. “Sem um doutoramento não há praticamente nenhuma possibilidade de acesso à carreira docente”. Neste período de crescimento do número de doutoramentos, os programas das universidades para os estudos de 3.º ciclo – a designação formal após Bolonha – passaram também a incluir aulas (habitualmente em formato de seminário), contrariamente ao que era prática corrente até então.

Esta reconfiguração no valor social de um diploma superior não é, porém, a única explicação para o crescimento do número de doutorados. Parte da justificação prende-se também com a aposta feita pelos dos governos da primeira década do século XXI no aumento das qualificações da população, visível no aumento do número de bolsas atribuídas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Estes apoios passaram de 670, em 2003, para mais de 2000, em 2007 – antes da quebra abrupta para apenas 420 bolsas atribuídas em 2013.

Ao mesmo tempo, as instituições de ensino superior têm feito um esforço superior de promoção da sua oferta nesta área, até porque as propinas “são uma receita muito importante para a sobrevivências das universidades face aos cortes no financiamento do Estado”, lembra Filomena Parada. Nas principais universidades nacionais, um doutoramento custa 2750 euros anuais, praticamente o triplo de uma licenciatura.

Três perfis distintos
Sabemos que se fazem mais doutoramentos hoje do que em qualquer outro período em Portugal. Mas quem são as pessoas que estão a fazê-los? Os dados oficiais escasseiam e apenas mostram que os doutorados são cada vez mais jovens – em 2003 não havia doutorados com menos de 35 anos e 15% tinham entre 35 e 44. Em 2012, 12% de diplomados tinham menos de 35 anos e havia 32% na faixa etária seguinte.

“Não há um doutorado típico”, considera Filomena Parada, vice-presidente Eurodoc. “Não há um, mas vários perfis de doutorados”, concorda Emília Araújo. As duas investigadoras coincidem também na definição de três perfis distintos de doutorados. Por um lado, há um grupo, maioritariamente composto por jovens, que fizeram um percurso académico praticamente ininterrupto entre licenciatura, mestrado e doutoramento – e que têm o objectivo de fazer carreira como investigadores e docentes no ensino superior.

Parte destes são coincidentes com outro grupo, o das pessoas que partiram para o doutoramento porque não tinham outras possibilidades de encontrar trabalho, tendo-se candidatado a uma bolsa de estudo para assegurar um vencimento durante, pelo menos, três anos. “Eram pessoas que preenchiam certamente os requisitos académicos, mas que, se tivessem outra alternativa de emprego, não teriam feito o doutoramento”, considera a socióloga da Universidade do Minho. Este grupo tem tido, porém, tendência para ser cada vez menos representativo, por via da redução no número de bolsas atribuídas pela FCT.

Um terceiro perfil é o das pessoas que já têm uma vida profissional activa e que decidem voltar a estudar, por necessidade de promoção pessoal ou profissional. Como as bolsas de doutoramento financiadas pelo Estado implicam um contrato de exclusividade, na maioria destes casos, o plano de estudos é pago pelos próprios doutorandos. E são sobretudo estes que recorrem ao doutoramento agora, mas que, antes da reforma de Bolonha, fariam um mestrado.

Mesmo tendo-se registado um crescimento recente sem precedentes no número de doutorados, as pessoas com este nível de qualificações representam ainda uma fatia bastante reduzida dos trabalhadores nacionais: 5,4 por mil, da população entre 25 e 64 anos. De acordo com um estudo recente da empresa de consultoria Advancis, 94% dos doutorados tinham um emprego. Os dados de A Empregabilidade dos Doutorados nas Empresas Portuguesas, publicado no início deste ano, indicam ainda que 2% dos diplomados com um doutoramento estão desempregados e 4% inactivos.

“Apesar de genericamente beneficiarem de uma posição favorável face ao emprego”, os doutorados estão, porém, “mais sujeitos a vínculos contratuais precários do que outros trabalhadores”, concluiu o mesmo estudo. Entre os 23.527 doutorados que tinham emprego em 2012, 41% tinham um vínculo de trabalho temporário. O ensino superior continua a ser o sector de actividade que emprega mais doutorados (67%) – seguem-se o Estado (16%) e as empresas (8%) –, mas a tendência é para que as universidades e politécnicos tenham um peso cada vez menor entre os empregadores da população mais qualificada. Em 2003, 85% dos doutorados trabalhavam no ensino superior, mais 18 pontos percentuais do que em 2012.

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