Eu vejo o som

Hoje existe uma multiplicidade de dispositivos e de situações onde a música pode acontecer ao vivo. Mas momentos definidores de um antes e de um depois, como aquele que foi intuído pelos Kraftwerk, são raros.

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The Knife (na foto), Björk, Laurie Anderson: há casos em que a história, no caso da expectativa gerada pela performance ao vivo, se acelera PAULO PIMENTA
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Björk SUSANA VERA/ REUTERS
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Laurie Anderson NELSON GARRIDO

Roupas uniformizadas, postura impassível, vocalizações robóticas, animações infográficas, som electrónico cristalino e imagens de vertigem mas também de melancolia de um tempo indefinido. Nem passado, presente e futuro, tudo isso ao mesmo tempo.

Desde os anos 1970, com modificações tecnológicas, como a presente aposta no 3-D, que é assim que os alemães Kraftwerk se apresentam em palco, reactualizando a forma como expõem ao vivo as suas canções mais conhecidas como The model, Autobahn, Radioactivity, Pocket calculator, Neon light, Trans-Europe express, The robots ou Music non stop.

Quando surgiram com este dispositivo diferenciavam-se de maneira óbvia do padrão estabelecido pela cultura rock, apostando numa performance multidimensional de som, luz e imagem. De alguma forma conseguiram diversificar a forma como a música pop podia ser exposta para grandes plateias, qualquer coisa que não se tem visto muito nas últimas décadas.

“As evoluções culturais e tecnológicas das últimas décadas aconteceram a uma velocidade muito mais elevada do que em qualquer outra época, daí que seja impossível manter essa sensação de constante inovação”, analisa o músico, artista e editor João Paulo Feliciano, que nos últimos anos tem concebido o design dos palcos e do espaço do Primavera Sound.

“Existe a sensação de uniformização, mas os casos singulares são sempre raros, com excepção de momentos em que a história acelera. Quando os Kraftwerk apareceram e desenvolveram a sua linguagem isso aconteceu, mas são casos pontuais – o mesmo se aplicando a Laurie Anderson, Björk ou Einsturzende Neubauten, por exemplo, que em algumas ocasiões apostaram em conceitos que acabaram por ter um efeito de contaminação.”

O desenvolvimento e o acesso facilitado à tecnologia não só tem permitido que muito mais gente produza música, como aposte na sua representação através das imagens. “É cada vez mais usual vermos em palco a música associada às imagens, transformando a experiência dos espectáculos”, defende Rui Maia, ou seja Mirror People, com álbum de estreia (Voyager) acabado de lançar. “Algumas canções que conheço dos discos, quando são representadas visualmente, através de videoclipes, podem ganhar nova pertinência. Da mesma maneira, ver os Kraftwerk sem imagens talvez resultasse, mas sem uma proximidade física ao grupo, o espectáculo poderia tornar-se obviamente aborrecido.”

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Evolução e negação do formato
A transposição da música produzida por meios electrónicos para o palco foi desde sempre um problema, defende por sua vez Luís Fernandes, músico de vários projectos (The Astroboy, Quest, Peixe: Avião), programador do espaço GNRation e um dos responsáveis pelo festival de música electrónica Semibreve.

“O formato concerto está associado a uma expectativa de performance e execução da música ao vivo, em tempo real. Pela natureza da música electrónica, e pela forma como ela é construída processualmente, é muitas vezes difícil aproximar um concerto electrónico a um de pop, rock ou de música erudita.”

Ou seja, os formatos de apresentação de música ao vivo, no centro do mercado pelo menos, continuam a ser os mesmos há algumas décadas. O que não significa ausência de propostas arrojadas, como é o caso dos músicos Ryoji Ikeda, Ryoichi Kurokawa ou AntiVJ, afirma Luís Fernandes, ou no domínio mais popular a colaboração de Joanie Lemercier (dos AntiVJ) com Jay-Z. 

“A música electrónica criou um corte que a maior parte das pessoas não sabe resolver”, afirma por sua vez Feliciano, lembrando que casos como o músico português Rafael Toral – que encontrou uma forma de interagir fisicamente com as máquinas electrónicas, repondo esse contínuo físico entre a actividade física e o resultado sonoro – não existem muitos.

No campo da música electrónica, na relação entre som e imagem, desenham-se dois caminhos distintos. “Por um lado a evolução do formato, principalmente pela exploração da parte técnica, e por outro a negação do formato, como é o caso do Francisco Lopez, no domínio da música mais experimental, que através dos seus concertos de olhos vendados, tenta remover qualquer estímulo visual que possa desviar as atenções do som”, afirma Fernandes.

Quem tem operado, seja no campo das artes plásticas ou da música popular, sempre com recurso a imagens e som, é o artista e músico angolano Nástio Mosquito que, independentemente dos formatos, diz que o principal é ter alguma coisa para dizer.

“Os Kraftwerk procuram um grau de intencionalidade, em tudo o que fazem, impressionante”, diz ele. “Eu, como a maior parte de nós, vejo som. O som oferece-me uma narrativa cognitiva. No meu trabalho uso som, palavra e imagem, no fim de contas, para contradizer, enaltecer ou reafirmar uma determinada narrativa que é uma desculpa para manipular aquilo que não controlo no mundo. O que quero oferecer com a minha música neste momento é um grau de intencionalidade sem jamais fingir ser, ou ter, algo que me parece ser único nos Kraftwerk. Eu sou da remistura, da reinterpretação e da reconciliação com o que somos enquanto indivíduos e com aquilo de tangível que nos rodeia, talvez como todos aqueles a quem os Kraftwerk ainda inspiram.”

Na relação com as palavras, as imagens não podem ser ilustrativas, defende Nástio Mosquito. “As imagens têm de oferecer dimensão narrativa e não apenas estética, e isso por vezes pode significar contestar o que palavras ou os sons comunicam.”

Uma ideia semelhante é defendida pelo músico Sérgio Faria, que acaba de lançar dois álbuns, adoptando as designações Die Von Brau e Dedication For Project 01. “A relação entre música e imagem pode ser perigosa, se as imagens em vez de amplificarem a mensagem do som a diminuírem conceptualmente. Mas quando bem feito pode amplifica-la, complementando-a.” Na sua visão nada se deve sobrepor ao facto de música ser música e imagem ser imagem, ou seja, ambas devem ser valorizadas por si só e nunca depender uma da outra. “Deve existir um equilíbrio.”

Claro que a possibilidade de inovar na forma como se apresenta música ao vivo vai muito além dessa relação com a imagem. Ainda o ano passado os suecos The Knife provocaram reacções desencontradas quando, na última digressão, resolveram apostar num espectáculo coreográfico. O mesmo sucedendo com as coreografias desencadeadas no meio do público por Dan Deacon, ou com as suas propostas de interactividade, convidando a assistência à participação a partir de aplicações para iPhones. 

Na verdade, hoje, existe uma multiplicidade de dispositivos e de situações onde a música pode acontecer e ser experienciada ao vivo. Mas momentos definidores de um antes e de um depois, como aquele que foi intuído pelos Kraftwerk, são muito raros. 

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