Günter Grass em Portugal, entre o Algarve e Saramago

O Nobel da Literatura expunha regularmente a sua obra plástica no Algarve, onde tinha casa, e era próximo de Saramago, cuja obra ilustrou. Até o discurso do Nobel foi parcialmente escrito em Portugal.

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Saramago e Grass em Lisboa em 1998 Daniel Rocha
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A casa de Grass no Algarve NUNO JESUS
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Ahornblätter, aguarela de 1997 Günter Grass
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Apfelblüte, aguarela de 1997 Günter Grass
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Huckepack gennomen, desenho a tinta da china de 1994 Günter Grass
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Tanzer (dançarinos), bronzes de Grass sem data Günter Grass

A relação entre o escritor Günter Grass e Portugal era estreita. Passava pelo Algarve, onde tinha uma casa no concelho de Portimão, e onde expunha a sua obra como artista plástico no Centro Cultural de São Lourenço, em Almancil, mas essa ligação ao país passava também e muito por José Saramago. Até o discurso de aceitação do seu Prémio Nobel foi parcialmente escrito em Portugal.

Segundo Claudia Hann-Rabe, directora do Goethe-Institut, Grass vinha a Portugal "porque podia trabalhar com calma, podia concentrar-se. Parte do discurso do Nobel", acrescenta, "foi escrito em Portugal". "Adorava o povo português, a revolução de 1974", recorda, e a forma como Portugal encontrou a democracia.

Seu antecessor no Nobel da Literatura (Saramago recebeu o prémio em 1998, Grass em 1999 e com o voto de apoio do português), os dois escritores partilharam editores como Drenka Willen na Houghton Mifflin Harcourt e a obra póstuma do romancista português, Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas (2014), contou com ilustrações do amigo. "Unia-os", diz ao PÚBLICO a presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Río, "uma relação de admiração e de amizade. José Saramago foi o primeiro editor de Günter Grass em Portugal", recorda, "e quando Saramago recebeu o Nobel disse que tinha pudor de receber um prémio que Günter Grass não tinha". Partilharam "viagens, congressos, momentos" e quando foi convidado a ilustrar Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, "mandou três desenhos para a capa mas quando viu o texto de Saramago enviou muitos mais", que acabariam por integrar a obra. 

Em 2006, quando o Nobel alemão confessou, por ocasião do lançamento da sua auto-biografia Descascando a Cebola (editadas em 2007 pela Casa das Letras), que tinha sido voluntário na unidade de elite da Alemanha nazi Waffen-SS quando tinha 17 anos, Saramago não hesitou em defender o amigo das violentas críticas - apesar da sua "perplexidade" perante a novidade. "Ele tinha 17 anos. E o resto da vida não conta? Parece-me uma reacção hipócrita, de muita gente que talvez não consulta a sua própria consciência. Muita gente quer encontrar pés-de-barro em personalidades influentes", disse José Saramago ao diário espanhol El País. Ao PÚBLICO, Saramago detalha: "Todos guardamos segredos. Mas parece, do ponto de vista daqueles que se escandalizaram, que não podemos guardar segredos. Então não vamos guardar segredos, todos. Dizem: 'Ah!, mas uma figura pública...'". E embora reconheça que "evidentemente que teria sido melhor para Grass se o tivesse confessado desde o princípio. Mas ele usou o jogo das meias-verdades", o autor de Memorial do Convento remata com um taxativo "Eu não condeno o Günter Grass".

Políticamente, estiveram juntos em várias causas, desde a Plataforma de Apoyo a Zapatero, quando das legislativas espanholas, e uniram-se em vários "fóruns sociais", falando e escrevendo em "defesa da democracia, de populações desfavorecidas", acrescenta Pilar del Río. "Tinha um rosto muito solene, augusto, mas não estava sempre zangado, era muito cordial", recorda a viúva de Saramago numa nota mais pessoal. 

A sua relação com o calor do sul português era igualmente próxima. No seu diário de viagens Em Viagem - De Uma Alemanha à Outra (1990, D. Quixote), Günter Grass fala sobre o Vale das Eiras algarvio onde tinha casa, sem televisão, com muitos desenhos a tinta de choco, de lula ou de polvo e plantas de que se ocupava, desde a década de 1980. Uma entrada desse diário: "3 de Janeiro de 1990. O primeiro peixe do novo ano, acompanhado de legumes - tomates, curgetes, pimentos, cebolas e batata-doce - e cozinhado no forno. Comprado em Lagos."; "17 de Janeiro de 1990. Um dia dedicado à cozinha: estive a preparar umas tripas para amanhã, dando-lhe uma fervura. Ao jantar houve lagostins fritos em azeite e alho e duas grandes ovas (bacalhau), que envolvi em farinha e passei na mesma frigideira, fritando bem de todos os lados. O que restou cortei depois em fatias e pus de conserva em vinagre com coentros frescos e rodelas de cebola. Cozinhei as tripas à napolitana com tomates grandes, alho, batatas, e manjerona. Por aqui, só mesmo o acto de cozinhar é uma festa.".

O Centro Cultural de São Lourenço, fundado pelo casal franco-alemão Marie e Volker Huber e encerrado em Abril de 2012, recebia-o frequentemente. Em 1984, expôs ali pela primeira vez os seus trabalhos de ilustração e a ligação não mais se quebrou - ali voltaria a expor em 1986, 1988, 1991, 1993, 1994 e 1999. Marie Huber recorda ao PÚBLICO como a relação começou: em 1984, Grass "visitou a galeria com a mulher e as crianças, tinha uma família numerosa. Passámos a tarde aqui e simpatizámos uns com uns outros". Lembra "um homem muito aberto, que gostava de falar do seu trabalho" e que muitas vezes brindava o casal amigo com leituras de inéditos ou de excertos de obras ainda por terminar. "Tive a sorte de mostrar várias vezes a minha obra gráfica, as aguarelas, os desenhos e as esculturas, em exposições acompanhadas geralmente de uma leitura do meu livro recém-publicado", escreveu Günter Grass em 2012 num texto enviado a Marie Huber em homenagem ao marido, Volker. Foram ali lidos pelo Nobel excertos de O Meu SéculoMau Agoiro ou O Andar do Caranguejo.

Quando Grass, que visitava três ou quatro vezes por ano a sua casa junto à serra de Monchique, estava no centro cultural muitos ali acorriam para o ver. E para ver uma obra que era desconhecida do grande público. "Ao princípio ninguém sabia que ele era também um artista plástico e pouco a pouco o público habituou-se a apreciar os seus desenhos, ilustrações, esculturas", conta Marie Huber. A relação entre os escritos e a vertente plástica era estreita, explica Marie Huber. "A sua obra plástica estava sempre relacionada com a obra escrita - ele escreveu num texto de um catálogo que 'às vezes a imagem está presente antes da palavra'", diz a francesa residente no Algarve. "Desenhava primeiro e depois verificava se a ideia se mantinha. Uma relação muito intensa entre essas duas maneiras de comunicar."

A última vez que o escritor e artista esteve em Almancil foi em 2012, diz Marie Huber, sendo que entre 2002 e 2006 ainda foi alvo de retrospectivas organizadas pelo centro e espalhadas pelo país, de Tavira a Lisboa - a última das quais no Goethe-Institut em Portugal. A sua directora, Claudia Hann-Rabe, convidou Grass a voltar em 2014 ao Goethe, mas o seu médico já não lhe permitia viagens longas. "Não tinha medo. Ninguém podia dizer-lhe o que fazer", descreve Hann-Rabe, a quem Grass disse, quando foi colocada em Portugal "Que país maravilhoso! Que sorte!". 

Em 2010, Grass emprestou o seu "alto patrocínio" à primeira edição do Festival Internacional de Literatura do Algarve em Aljezur e dois anos antes e em Lisboa via o seu trabalho integrado na exposição Desenhos de Escritores, que reuniu no Museu Berardo cerca de 300 obras de escritores desenhadores.  

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