“A troika deixou que a austeridade na Irlanda fosse mais gradual”

O economista irlandês Philip Lane assinala que uma austeridade cada vez mais gradual ajudou o seu país a recuperar mais rápido do que Portugal ou a Grécia.

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“Não é verdade que a abordagem ortodoxa [adoptada na crise da zona euro] nunca funcione” Rui Gaudêncio

A Irlanda aplicou mais austeridade antes de a troika chegar ao país e não foi preciso realizar reformas estruturais, conta Philip Lane. O professor na universidade Trinity College em Dublin diz que o regresso ao crescimento concretizado pela Irlanda não é mais do que um regresso à normalidade antes da crise. “A Irlanda já tinha uma boa economia”, afirma.

A Irlanda está com taxas de crescimento elevadas, parece ter conseguido já sair da crise. Foi por ter feito coisas muito diferentes de Portugal e da Grécia?
Não tenho bem a certeza. Um factor importante a ter em conta é que a Irlanda entrou em crise logo em 2008 e não em 2010, quando as coisas ficaram mesmo difíceis aqui em Portugal. Por isso, pode-se dizer que nós estamos dois anos adiantados em relação aos outros. Houve uma grande recessão no final de 2008 e em 2009. Em 2010 já tínhamos atingido o fundo, o que não foi verdade aqui em Portugal. E além disso, quando a austeridade foi maior foi em 2009 e 2010.

Antes de chegar a troika…
Sim. A troika até permitiu que a austeridade se tornasse mais gradual. A Irlanda estava a ser mais agressiva antes porque estava a tentar manter os mercados satisfeitos. Com a troika, ficámos a saber que tínhamos três anos de financiamento oficial. Em 2012, a nossa austeridade foi muito menor do que nos outros países da troika e mesmo do que na Itália e na Espanha. Este ano, o orçamento não contém qualquer nova austeridade e em 2014 já era muito reduzida. Por isso, parte da recuperação é explicada pela redução da austeridade e do peso que constitui para a actividade económica.

E reformas estruturais?
Não foram feitas grandes reformas estruturais. A Irlanda já tinha, antes da crise, uma boa economia. Portanto, o objectivo era voltar a essa boa economia, que tinha sido destorcida de 2003 a 2007 pela bolha do mercado imobiliário. Portanto, não precisamos de reinventar a economia, apenas temos de resolver os problemas trazidos pela bolha imobiliária e voltar à forma antiga de funcionamento.

Pelo que me diz, a Irlanda recuperou mais cedo porque não teve de impor tanta austeridade e realizar reformas estruturais. É isso?
De certo modo, mas não se pode esquecer a diferença da natureza das crises. A Irlanda tinha uma economia que crescia rápido e em que, a uma certa altura, o sector da construção ficou demasiado grande e entrou em colapso. Agora, com a bolha rebentada, estamos a assistir a uma retoma. Em Portugal, antes da crise, já se crescia demasiado lentamente. Agora, à medida que a austeridade desaparece, o crescimento potencial continua a ser bastante baixo. É preciso Portugal olhar para outras coisas, como a educação ou a regulação, para tentar que a economia comece a crescer a um ritmo mais alto.

Acha que a austeridade imposta em Portugal foi a adequada?
Não sou um especialista em relação à situação específica de Portugal. Mas o que acho é que a austeridade, quando é necessária, deve ser aplicada em vários anos e deve levar em conta aquilo que se passa no resto da Europa. Por outras palavras: se o resto da Europa estiver a crescer rapidamente, um país pode aplicar mais austeridade do que se a Europa estiver em recessão. Deve levar também em conta o que se passa no sector financeiro. Se os bancos estiverem com problemas, deve-se apontar para um nível mais suave de austeridade. Se as famílias estiverem muito endividadas, a austeridade também se torna mais problemática. Foi aliás, por causa destes factores que na Irlanda se decidiu que a austeridade deveria ser mais moderada a partir de 2011.

A preocupação na Irlanda foi com o nível de endividamento das famílias?
Sim, se se quer que as famílias continuem a conseguir fazer o pagamento dos seus empréstimos, há um limite até ao qual se pode subir os impostos ou cortar nos serviços públicos.

O crescimento actual na Irlanda, parece-lhe sustentável?
O primeiro sector que recuperou foi o das exportações. E acho que agora, com o orçamento a tornar-se completamente neutral, vamos continuar a ter uma boa retoma da procura interna. Em particular o investimento, que colapsou durante a crise, está a começar a crescer a um ritmo muito elevado. Estamos a ver empresas a ter a confiança para comprar novas máquinas. Depois, antecipo que possa haver uma recuperação mais forte do consumo, há medida que há mais pessoas com empregos. Por isso, eu acho que vamos continuar a ter boas notícias ao nível do crescimento nos próximos tempos. De qualquer modo, a história da retoma na Irlanda é apenas a de um regresso à normalidade de antes da crise. Caímos e agora recuperamos. Quanto ao resto, muito vai depender daquilo que acontecerá à economia mundial.

Está confiante que o modelo irlandês vai continuar a funcionar no futuro, num Mundo de crescimento mais lento?
Acredito que é um bom modelo. Mas é um modelo que essencialmente permite à Irlanda participar na economia mundial. Não resolve a questão de qual a será a velocidade a que a economia mundial vai crescer. A estratégia da Irlanda é de integração. Se a economia mundial está bem, então a Irlanda também está. Não há uma aposta na diferenciação ou na inovação, como por exemplo a Irlanda fez com a Nokia nos anos 90.

Em relação à economia da zona euro, está optimista com os sinais recentes de retoma?
No sentido limitado de uma recuperação que acontece depois da queda, acho que sim. Os preços mais baixos do petróleo são bons para a Europa, a austeridade está a ficar mais moderada e, muito importante, o euro fraco e que ainda se pode tornar mais fraco constitui uma grande ajuda. A depreciação do euro permite que, em vez de resolver a questão muito mais difícil de saber como é que a periferia ganha competitividade em relação à Alemanha, a Europa consegue reduzir os custos em relação ao resto da economia mundial. Por isso, há muitos factores que ajudam ao crescimento. Agora, continua a haver muitos problemas, como o desemprego a um nível muito alto e a inflação muito baixa. Por isso, o que está a acontecer é apenas a recuperação face a um nível muito baixo. Pode demorar muito tempo a que se regresse à normalidade e penso que é por isso que o BCE vai continuar com o seu plano de compra de activos.

Acredita numa saída bem sucedida do problema grego?
Espero que se possa encontrar uma solução. Seria uma grande perda para o povo grego se tivessem que sair da zona euro. Seria bastante traumático sofrer tudo aquilo que implica uma saída do euro. Por isso acho muito importante evitar esse resultado. O que é preciso é que se chegue a um acordo razoável, que pode incluir por exemplo um prolongamento dos prazos de pagamento da dívida, uma indexação desse pagamento ao valor do PIB.

E menos austeridade?
O nível adequado de austeridade interage com as reformas que são feitas. Se se conseguir apresentar de forma credível um plano para fazer a economia grega crescer mais rápido, então não seria preciso fazer tantos aumentos de impostos e cortes de despesa para garantir que se continua a pagar a dívida. Não acho que haja um valor fixo para a austeridade, depende de tudo o resto que seja feito.

Não parece estar a ser fácil para as duas partes chegarem a um acordo em relação a isso?
No caso irlandês – e tenho a certeza que também aqui em Portugal – houve uma grande diferença entre o que a troika propôs e aquilo que acabou por ser implementado. Há sempre condições locais que conduzem a mudanças. Por isso estou certo que o Syriza vai conseguir encontrar a sua própria forma de fazer o ajustamento.

Acha que países como Portugal e a Irlanda, que também tiveram a troika do país, têm razões para ser mais exigentes com a Grécia?
O que penso que estes países podem fazer é servir para dar mais confiança à Grécia de que é possível começar a ter sinais de retoma com estas políticas. Não é verdade que a abordagem ortodoxa nunca funcione. Essa abordagem pode ser criticada, pode não ser a melhor, mas a ideia de que é autodestrutiva e de que não traz qualquer tipo de compensação não se confirma. Por isso, acho normal que os países periféricos enfatizassem que existe uma retoma e que a Grécia pode consegui-la. Mas o problema aqui está na comunicação. Na realidade, o que o Syriza tem dito é que quer pagar a dívida e quer cumprir os seus compromissos, a diferença não é assim tão grande. Mas em termos de comunicação, a narrativa de que na Grécia se está a apresentar uma alternativa radical torna-se perigosa politicamente para os governos dos outros países periféricos.

Diz que a abordagem ortodoxa produz resultados. E uma abordagem que apontasse para a saída da Grécia do euro não acabaria também por produzir resultados?
Uma desvalorização da moeda acabaria por conduzir ao crescimento, é verdade. A economia ficaria muito mais barata e poderia recuperar. Mas seria pago um preço bastante elevado no nível de vida da população grega e os impactos financeiros de curto prazo seriam severos e traumáticos. Acho que politicamente uma desvalorização da moeda é muito difícil. Uma abordagem alternativa deste tipo teria custos imediatos muito elevados, e as vantagens apenas surgiriam mais tarde. Penso que uma zona euro reformada é ainda assim o melhor resultado que se pode esperar obter.

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