Uma orquestra num milhão para mornas e coladeiras

Desde 21 de Maio do ano passado, Cabo Verde dispõe de uma orquestra para fixar, transmitir e reinventar o seu poderoso acervo musical. “É melhor do que uma selecção de futebol”, diz o histórico guitarrista Manuel de Candinho.

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A Orquestra Nacional de Cabo Verde está ainda muito longe do objectivo de ser maioritariamente constituída por músicos cabo-verdianos DR
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Manuel de Candinho é um dos veteranos DR

O que fazem o ex-presidente da Cabo Verde Telecom e ex-embaixador de Cabo Verde junto das Nações Unidas, um histórico guitarrista de Santiago e um maestro meio cabo-verdiano, meio holandês que se especializou em salsas e rumbas numa segunda-feira à noite?

Adeptos ferrenhos de futebol (português) como são nove em cada dez cabo-verdianos, a resposta mais previsível seria: assistem a mais um inútil programa de comentário desportivo na televisão. Mas o que se segue é imprevisível: desde 21 de Maio de 2014, Cabo Verde dispõe finalmente de uma orquestra criada por iniciativa do Ministério da Cultura (MC) para fixar, transmitir e reinventar o seu poderoso acervo musical. E foi assim que há exactamente uma semana Humberto Bettencourt Santos, que todos conhecem como Humbertona, Manuel de Candinho e Carlos Matos abriram a terceira edição do Atlantic Music Expo no auditório da Assembleia Nacional com um concerto em que as tradicionais mornas e coladeiras foram elevadas a uma potência semi-sinfónica.

Parte escola, parte museu vivo, a Orquestra Nacional de Cabo Verde (ONCV) está ainda muito longe do objectivo de ser uma formação maioritariamente constituída por músicos cabo-verdianos, estejam eles no arquipélago ou na diáspora. Este é um país fifty-fifty: metade dos nacionais em casa, outra metade na emigração, condição que de resto se reflecte na titularidade da orquestra, partilhada por um maestro de formação clássica e educado no Conservatório de Música de Roterdão e outro vindo do mundo das bandas militares e da Academia de Música de Moscovo. Mais de 50% dos actuais instrumentistas da formação – e uma esmagadora maioria da sua secção de violinos, particularmente escassa nas ilhas – vem da Europa, com Portugal e Holanda, onde o maestro titular Carlos Matos nasceu, rodeado por uma das mais febris comunidades cabo-verdianas de toda a Europa, à cabeça (já tinha 20 anos quando foi pela primeira vez a Cabo Verde…). Enquanto essa missão não se cumpre, o país vai-se aproximando de uma ideia de formação musical contínua que contraria o paradigma autodidacta dominante numa classe quase totalmente por profissionalizar.

O projecto da orquestra só atingirá, aliás, a sua maioridade quando finalmente abrirem as inscrições para a futura Escola Superior de Música de Cabo Verde. “Já estão a ser dados passos nesse sentido”, garante ao PÚBLICO – boné na cabeça, calção de praia e chinelo no pé – Manuel de Candinho, que acaba de chegar ao Palácio da Cultura Ildo Lobo para frequentar a masterclass do baixista camaronês Richard Bona.

A uns consideráveis milhares de quilómetros de distância, em Roterdão, o maestro Carlos Matos explica-nos que estava em digressão na Arábia Saudita com outro dos seus vários projectos quando o ministro Mário Lúcio lhe telefonou a perguntar-lhe se queria liderar a ONCV. “Tinha pouco tempo e pouca experiência para preparar arranjos de cordas, mas lá me dispus à aventura. A 21 de Maio do ano passado estávamos a dar o nosso primeiro concerto com mornas e coladeiras”, diz. Mas afinal para que serve uma orquestra destinada a salvaguardar um repertório quando a música cabo-verdiana está viva em absolutamente todas as instâncias do dia-a-dia? “Cabo Verde sempre foi um país de música, claro, mas neste momento ela sofre um problema grave em termos de conservação, divulgação e conhecimento. A orquestra pode ser uma plataforma para desenvolver e consolidar a música tradicional cabo-verdiana e servir como modelo para os instrumentistas que se querem iniciar neste universo. Em vez de começarmos por um programa escolar de formação avançada convencional, decidimos começar pelo fim, pela criação da orquestra. E com ela vêm workshops, masterclasses, os métodos escrito e oral…”

O maestro tem uma teoria para pôr à consideração, uma teoria que dá força suplementar à sua indicação para liderar esta orquestra: “Na diáspora preocupamo-nos mais com a identidade musical do que em Cabo Verde; talvez tenhamos mais necessidade de a proteger. Na minha geração [nasceu em 1972], já muito pouca gente toca instrumentos tradicionais, o que me faz sentir na obrigação de deixar algo escrito para memória e usufruto futuros…”.

Fixada a formação de 34 instrumentistas, depois de um recrutamento que teve forçosamente de se abrir à diáspora e aos músicos internacionais e também a uma ideia de circulação permanente, a ONCV tratou de começar a escolher o seu repertório a partir do poço sem fundo da tradição musical local. “As músicas que tocamos têm de representar algo de notável no contexto da música cabo-verdiana. Algumas delas reflectem momentos históricos do país, como a Fome 47, que fala dessa crise alimentar de que ainda hoje há memória; outras marcaram o seu tempo por razões mais sentimentais; outras identificam uma certa época… Compositores incontornáveis, verdadeiros ícones cabo-verdianos como Manuel de Novas e Luís Morais, têm sido abordados nos nossos concertos – e alguns dos nossos músicos também, como é o caso do Manuel de Candinho.”

Vitória colectiva
É justamente com ele que conversamos agora no café do Palácio da Cultura Ildo Lobo. Manuel, que aprendeu a tocar de ouvido, confessa que tem sido uma aventura a incumbência que lhe foi dada por Mário Lúcio de dirigir o Núcleo de Música do MC, levantando esta orquestra a partir de uma arquitectura construída com os instrumentos musicais dos quatro grandes géneros locais (morna, coladeira, funaná e batuque). E maior aventura ainda a iniciação à partitura num ambiente marcado pela “aprendizagem empírica e pela ausência de uma cultura de escolas de música”, com a desvantagem que têm os músicos incapazes de ler uma pauta e a vantagem de poderem tocar uma música que não conhecem de lado nenhum enquanto o diabo esfrega um olho. É um upgrade que, argumenta, “dignifica e projecta a música cabo-verdiana num formato que lhe dá mais respeito internacional”.

Cada “concerto plausível”, acrescenta, é uma vitória colectiva que para ele tem maior significado do que uma goleada dos Tubarões Azuis: “Acredito que esta orquestra representa melhor o país do que a selecção nacional. A música é verdadeiramente uma linguagem universal. Quem diria que músicos polacos e holandeses conseguiriam falar a nossa língua de mornas e funanás?” Ainda assim, o núcleo duro da ONCV, a secção rítmica, é orgulhosamente crioulo: “Os violões e os cavaquinhos são todos cabo-verdianos, têm os géneros no sangue. Só os arranjos é que vêm de fora, mas isso não descaracteriza.” Antes da primeira actuação, confessa o guitarrista, ouviu gente a perguntar para que raio precisaria Cabo Verde de uma orquestra de ambição sinfónica. “Depois do primeiro concerto o espírito já era outro: ‘Eu não sabia que a morna podia ser assim; nunca gostei, agora vai ser o meu género favorito'.”

Mais acima na avenida, outro histórico, Humbertona, senta-se à nossa frente no restaurante-concerto Quintal de Música para contar como chegou, aos 75 anos e depois de uma carreira como responsável por todo o sector das Pescas no país após a independência, embaixador de Cabo Verde no Benelux e nas Nações Unidas e presidente do Conselho de Administração da Cabo Verde Telecom, a ocupar um dos lugares reservados ao violão na nova orquestra. Do yé-yé da sua banda de juventude, os Ritmos Cabo-Verdianos (a verdadeira glória: digressão de um mês na Guiné-Bissau, segundo lugar num concurso de bandas das colónias ultramarinas em pleno Estado Novo), aos sete discos da sua consagração (com Sodade a brilhar consideravelmente mais do que os outros), passando pela licenciatura na Bélgica, pelo serviço militar obrigatório em Portugal, pelas gravações com um então jovem Bonga e pela militância no PAIGC, é agora que Humbertona está definitivamente instalado na música. “O meu violão sempre está em cima do meu sofá. A minha mulher faleceu, os meus filhos estão muito longe, é assim que me ocupo, embora ainda tenha algumas pequenas actividades paralelas."

Temporariamente afastado dos relvados por uma tendinite, Humbertona faz-nos a fineza de identificar as limitações do projecto: “Sendo Cabo Verde um arquipélago, os músicos estão dispersos por várias ilhas; pior, muitos estão na diáspora ou até são estrangeiros. É difícil juntar as pessoas e fazer concertos.” Depois, há poucas salas e poucas ou nenhumas lojas onde comprar instrumentos, à excepção da guitarra acústica e do cavaquinho. Mas os concertos lá se vão fazendo – haverá uma digressão por várias ilhas do arquipélago antes da primeira saída para a Europa, Portugal incluído –, e como diz Manuel de Candinho é sempre a subir: “Aprendemos de dia para dia e de concerto para concerto.”

O PÚBLICO viajou a convite da Tumbao

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