O Nordeste Transmontano não seria o mesmo sem o abade de Baçal

Pode um dos maiores vultos da história e cultura do Nordeste Transmontano ser injustiçado pela defesa demasiado zelosa dos seus conterrâneos? É essa a questão que se levanta desde quinta-feira, dia do início das comemorações dos 150 anos do nascimento de uma figura tão importante quanto injustiçada para o Nordeste Transmontano.

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Na aldeia de Baçal, a casa do abade poderá vir a ser adquirida pela autarquia para posterior recuperação Paulo Pimenta

Até ao final do ano decorrem várias iniciativas que pretendem recordar aquele que ajudou a formar a identidade cultural dos transmontanos, sobretudo do distrito de Bragança, mas o fervor com que é recordado e defendido na terra natal acaba por minimizar a importância nacional do seu legado - é essa injustiça que se pretende desfazer, recordando o vulto que foi etnólogo, etnógrafo, historiador e sacerdote.

“É uma data muito significativa para nós. É uma figura e um ícone da região, acarinhada por todos os transmontanos. Foi um construtor da nossa identidade”, recorda Ana Afonso, desde 2010 diretora do Museu ao qual o Abade empresta o nome, desde 1935.

O Museu do Abade de Baçal é apenas um dos marcos da presença de Francisco Manuel Alves na região. O filho de lavradores que, como já se disse, “via nascer o sol da quilha do arado”, é a fonte onde todos os investigadores sobre Trás-os-Montes vão beber. Estátuas, uma avenida e até um agrupamento de escolas recordam hoje o homem que amou a terra como poucos e à qual dedicou uma vida de estudo e sacerdócio.

Uma dimensão que o actual bispo da diocese de Bragança-Miranda, D. José Cordeiro, reconhece. “É de uma fé granítica. Além de transmontano é um cristão convicto e foi um sacerdote que exerceu o seu ministério e conseguiu conciliá-lo com as várias funções que foi assumindo na sociedade, inclusive a de director do museu regional, na altura, de vereador municipal, mas salvaguardando sempre a identidade cristã. E, depois, a sua naturalidade, a sua humildade e o estar sempre ligado à terra, às raízes, sem nunca perder a sua ligação à família, à Igreja, ao Nordeste Transmontano”, explica o prelado, que atribui ao Abade de Baçal um papel preponderante na defesa do arquivo diocesano, um dos mais completos do país ainda em posse da Igreja.

“Também me causava alguma interrogação como é que a diocese perdeu a Casa Episcopal, que hoje é o museu dele, mas não perdeu o arquivo. Foi por causa dele. Os bispos que estiveram logo a seguir à implantação da República pediram ao Abade de Baçal que, a par da investigação que fazia, trouxesse das paróquias o espólio mais importante. E é graças a ele que temos um arquivo diocesano incontornável neste país, porque os outros estão quase todos na posse do Estado”, recorda D. José Cordeiro, para quem “a figura do Abade ajudou a conciliar muitas atitudes, muitas pessoas, muitas circunstâncias que ocorreram no tempo dele”, numa altura de grande atribulação na diocese. “Há muita gente que pensa que o Abade dedicou-se àquilo para que era pago pelo Estado mas não ligou ao ministério e não tinha ligação com a Igreja. Não é verdade. Nunca perdeu a lealdade com o bispo, a fidelidade à Igreja, a Cristo e ao seu ministério”, conclui.

O lado mais visível desta figura é a investigação histórica publicada nas “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança”, um trabalho que trouxe luz sobre uma região esquecida pelo tempo. “Antes dele, o que havia era tudo muito esparso. Teve a preocupação de compor um todo, de juntar as várias peças e tentar dar uma explicação global a esta região. Antes dele não há nada que se compare, com esta envergadura, para nenhuma região de Portugal”, sublinha Luís Carlos Amaral, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a quem coube a responsabilidade, na quinta-feira, de trazer um pouco de luz sobre esta figura. E se, antes dele, pouco havia, depois, “não haverá muito mais, não a esta escala”.

Luís Carlos Amaral considera que há dois traços fundamentais no Abade de Baçal. “Em primeiro lugar, é a sua atitude como ser humano. Estamos perante alguém muito grande, que teve uma atitude humana no seu lugar e no seu tempo, com os seus concidadãos, verdadeiramente notável. E manifestou-a enquanto etnólogo, enquanto etnógrafo, enquanto historiador, enquanto sacerdote também”, expõe.

Ou seja, de um certo ponto de vista, “foi uma pessoa que procurou encontrar uma identidade para Trás-os-Montes através da História. Tinha uma visão muito moderna do conhecimento historiográfico. Para ele, o conhecimento do passado e a reconstituição eram formas de intervenção no seu tempo e no presente e no espaço que era o seu e que ele considerava a sua pequena pátria, que era a terra transmontana. Teve a preocupação de perceber a sociedade do seu tempo através da reconstituição desse passado”, nota, mesmo que, para os padrões atuais, a sua metodologia esteja ultrapassada.

Mas, por outro lado, o mesmo investigador considera que “é, também, muito significativa a forma como ele o faz, desenhando um projecto que não estava definido à partida mas que foi sendo construído ao longo dos anos e que é um projecto vastíssimo”. “Construiu uma enorme catedral em torno de Trás-os-Montes, do qual os testemunhos maiores são as suas memórias e este museu. São os pilares dessa acumulação de conhecimento que fez sobre Trás-os-Montes. Procurou a identidade mais profunda de Trás-os-Montes e dos transmontanos.” E, ao fazê-lo, “está a contribuir para a própria identidade nacional”.

E é esse exemplo que os seus conterrâneos da actualidade deveriam seguir. Licínio Martins, vereador da autarquia de Vimioso, entende que é chegado o momento de “reflectir sobre o que já era uma perspectiva do Abade de Baçal e que ainda é actual, que é a de uma identidade regional”, diz. “Os municípios devem partir destas referências e terem a preocupação de passarem à acção. Devemos passar à prática na perspectiva de defender a identidade cultural, que é riquíssima. São estas obras que reforçam a nossa identidade cultural e devemos usá-las para relançar a região e preocuparmo-nos com o seu futuro”, conclui.

Mas há muito que a excessiva regionalização que se faz do Abade diminuiu a sua dimensão. “Ele é alguém que, partindo de uma base regional tem uma clara dimensão nacional. Uma excessiva salvaguarda dele em relação às terras transmontanas, porque aparentemente só estudou Trás-os-Montes, diminui a sua figura”, diz Luís Carlos Amaral.

Uma diminuição “injusta, sem dúvida, que é feita com a melhor das intenções pelos transmontanos”. “A forma como o fez e como trabalhou, é de uma escala nacional, mas centrado no território de Trás-os-Montes. Acho que é mais do que tempo de ser tratado como uma figura de dimensão nacional”.

Entre as celebrações está a realização de várias exposições no seu museu, de Abel Salazar à transmontana Graça Morais, por exemplo, ou a apresentação de um vinho especial, reserva de 2011, inteiramente produzido e engarrafado pela Santa Casa da Misericórdia de Macedo de Cavaleiros.  

Já a Câmara Municipal de Bragança procura resolver um problema com mais de cinco anos, que é a degradação acelerada da casa que pertenceu ao Abade, na aldeia de Baçal. O actual proprietário deixou de ter capacidade financeira para a manter e, nesta altura, o presidente da autarquia, Hernâni Dias, admite que decorrem negociações para a aquisição do imóvel e posterior recuperação, de forma a ter “um destino que seja consentâneo com a personalidade a quem pertenceu”.

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