"A justiça nunca foi prioridade de nenhum Governo"

Aos 43 anos, António Ventinhas não é virgem na defesa dos direitos dos magistrados do Ministério Público: está há muito ligado ao sindicato que passa a dirigir esta quinta-feira, depois de ter ganho as eleições com o apoio do seu antecessor. Casado com uma notária, com quem tem duas filhas, este praticante de artes marciais fez estágio de advocacia antes de entrar para a magistratura, período durante o qual chegou a trabalhar num banco, na análise de projectos imobiliários.

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Nelson Garrido

Especializado na área da investigação criminal, o novo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público licenciou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa na altura em que por lá passaram Bernardino Soares e Sérgio Sousa Pinto, entre outros. Mora há década e meia no Algarve, onde vai continuar a residir.

Portugal alguma vez vai vencer a luta contra a corrupção? Ou é um fenómeno endémico?
Todos os países têm corrupção, mas os níveis de corrupção em Portugal ainda são muito elevados. É um caminho que tem de ser feito, uma luta que tem de ser travada, sob pena de a própria sociedade não ser viável. Se não há regras limpas e claras é claro que tudo fica distorcido. A corrupção é um inimigo sem rosto cuja vítima somos todos nós. Há porém cada vez há menos tolerância para com este fenómeno, cujas consequências todos temos pago.

Mas o que pode mais ser feito?
Em primeiro lugar tudo passa por uma mudança de mentalidades, que já está a ocorrer. E passa também pela repressão do fenómeno, pela investigação criminal, com mais meios e melhores peritos, mais cooperação a nível internacional. A Procuradoria-Geral da República, por exemplo, tem problemas de verbas até para mandar fazer traduções.

Pensa que essa escassez de meios é deliberada, para afrouxar as investigações aos ricos e poderosos?
Não tenho dados para dizer isso. Mas a justiça nunca foi prioridade de nenhum governo. A escassez de meios não se verifica só no combate ao crime económico, mas em todos os sectores. Claro que no crime económico quem está do outro lado são pessoas altamente poderosas e com amplos recursos económicos, pelo que se nota ainda mais essa diferença.

Há um combate desigual, é isso?
Nalguns casos acaba por ser. Imagine um processo onde são necessárias certas perícias. Se demoram muito tempo quem está a tentar ocultar dinheiro pode fazê-lo desaparecer rapidamente e aí já não se pode apreendê-lo e fazê-lo reverter a favor do Estado. Passamos tempo sem fim a tentar arranjar peritos para analisar documentação bancária e contabilística, por exemplo. O Laboratório de Polícia Cientifica da Judiciária ainda demora muito tempo nas perícias à letra. Aquela imagem que as pessoas têm da série CSI nem nos Estados Unidos é real, e muito menos em Portugal.

O Ministério Público também enfrenta um problema de falta de magistrados, não é?
Que já está a ter consequências na sua capacidade de resposta e se vai agudizar. Nalgumas comarcas o Ministério Público já não está a conseguir assegurar disponibilidade para os julgamentos marcados – e podem mesmo ter de os adiar. Já há colegas da investigação criminal a ter de assegurar alguns julgamentos. Está a funcionar-se no limiar do possível, já com muitas falhas por todo o país.

Quantos magistrados estão em falta?
Em Setembro faltavam 140, mas se juntarmos a isso o número de baixas e de licenças de maternidade seguramente faltam mais de 200.

E estão a ser formados no Centro de Estudos Judiciários?
Esse é o grande problema. O curso que está a decorrer tem apenas 20 magistrados do Ministério Público. Não dá nem para as jubilações. Se não forem tomadas medidas nos próximos dois/três anos isto ficará completamente incontrolável e nem sei como poderá funcionar. Pedimos que fosse aberto um curso especial para mais 100 magistrados. O próprio Conselho Superior do Ministério Público, presidido pela procuradora-geral da República e onde estão representados não só magistrados como membros indicados pela Assembleia da República e pela ministra da Justiça, já tomou uma deliberação também nesse sentido no Verão passado. Mas até agora não temos notícia de nenhum novo curso.

Falemos agora do mapa judiciário e do aparente afastamento das populações da justiça por via do encerramento de muitos tribunais. A ministra garantiu que ninguém ficaria a mais de 59 quilómetros de um tribunal. É mesmo assim?
Esta reforma tem aspectos positivos e negativos. A especialização dos magistrados traz ganhos de eficiência, como é facilmente perceptível. Mas a distância é um aspecto negativo, e a situação é mais complicada em certos tribunais especializados. Quem tenha um processo de insolvência em Aljezur, por exemplo, terá de vir a Olhão para resolver o seu problema. São 120 quilómetros. É como ter um centro de saúde ao pé de casa ou ter de se deslocar a um hospital central para tratar de um assunto mais especializado.

Este é o único problema da reorganização dos tribunais?
A implementação devia ter sido feita de forma mais coordenada, como se vê pelos problemas informáticos que sucederam. As coisas já estão a funcionar, mas ainda há problemas de ordem operacionais por resolver.

As medidas negociadas com a troika para acelerar a justiça portuguesa resultaram?
Vamos ser muito claros: andamos aqui a disfarçar os problemas da justiça com leis e com uma série de coisas. Mas é um escândalo o que se passa ao nível dos funcionários judiciais: faltam centenas de pessoas e se isto não for resolvido em dois ou três anos a justiça ficará ingovernável. Será o caos. Na secção de execuções de Silves há dois funcionários para tramitar 30 mil processos, porque um está de baixa. A Olhão foram parar 9500 processos de insolvência, e a informação que tenho é que só estão a andar 500 – os outros nove mil estão parados, porque não há funcionários. É preciso vir a troika para explicar que isto assim não funciona?! Que não se pode criar um exército sem soldados? A ministra da Justiça abriu agora um concurso interno para 600 funcionários, mas mesmo assim ainda é insuficiente, porque o défice é capaz de ser de mil pessoas. Depois pergunta-se por que é que a justiça é lenta e não funciona…  a solução é óbvia!

A ministra tem dito que com as reformas que levou a cabo terminaram os expedientes dilatórios de que abusam alguns advogados para os recursos se prolongarem quase até ao infinito. É mesmo assim?
Foram tomadas medidas para os diminuir, mas a minha experiência diz-me que a imaginação humana não tem limites.

Continua a haver uma justiça para pobres e outra para ricos?
Do ponto de vista formal a justiça aplica-se a todos de igual forma. Mas do ponto de vista material existem diferenças consoante se trate de um arguido com ou sem elevados meios económicos. Na área cível, o primeiro nem sequer recorre ao sistema tradicional de justiça. Muitos dos litígios relativos aos grandes contratos internacionais são resolvidos nos tribunais arbitrais, que o cidadão comum não pode pagar. Criam-se tribunais ad-hoc para tratar de determinados casos isolados, nos quais cada parte indica um árbitro [que funciona como juiz] e depois há um terceiro árbitro indicado pelas duas partes. No fundo, quem tem capacidade para isso constitui o seu próprio tribunal.

A existência desses tribunais é negativa?
Há aspectos positivos e negativos.

A justiça portuguesa não ficará descredibilizada se o caso que envolve José Sócrates não tiver pernas para chegar a julgamento?
Não posso pronunciar-me sobre casos concretos. Um processo ir ou não a julgamento depende sempre de uma decisão da própria justiça. Seria inadmissível que um qualquer caso tivesse de ir a julgamento só para credibilizar a justiça.

Já disse que considera natural as pressões que sofrem os magistrados que têm em mãos determinados processos. Pode explicar melhor?
É natural que se tente pressionar quem investiga determinados casos. Faz parte: ou através de notícias na comunicação social, ou de comentadores que vão emitindo opiniões em determinado sentido, ou mesmo por outras vias. As pressões assumem várias modalidades.

E os magistrados são permeáveis a elas?
Que eu tenha conhecimento não.

Disse recentemente que Pinto Monteiro não apoiava investigações aos poderosos
Não foi exactamente isso: disse que ele não apoiava os magistrados nas investigações. Quanto aos poderosos, é uma ilação das minhas afirmações. Mas o dr. Pinto Monteiro já terminou o seu mandato de procurador-geral da República há algum tempo; pertence ao passado do Ministério Público. Devemos centrar-nos antes no futuro.

O Ministério Público desempenha também um papel, embora menos conhecido, na defesa dos direitos dos trabalhadores e dos menores em risco. Como pode melhorar a sua actuação nestas áreas?
Estamos a falar de milhares de trabalhadores que foram patrocinados pelo Ministério Público no último ano, por exemplo em impugnações de despedimentos ilícitos.

Essa questão agravou-se durante a crise?
Sim. Houve muitos despedimentos que foram formas encapotadas de reduzir os quadros das empresas, houve muitas entidades patronais que invocaram pequenas falhas do trabalhador para alegar que estava comprometida a relação laboral e avançar para o despedimento. Depois, como muitas vezes aquilo não tinha pernas para andar, tentaram chegar a acordo com o trabalhador. Já a falta de pessoal nos tribunais de família e menores, onde há muitos processos urgentes, está a dificultar a actuação do Ministério Público nesta área. Conheço vários tribunais onde, devido à escassez de meios humanos, está a ser muito difícil dar resposta em tempo útil aos problemas dos menores. A sua protecção fica assim menos tutelada. Um menor em risco que necessitaria de uma intervenção mais rápida se calhar vai ter de esperar duas ou três semanas em vez de uma. A questão é aquilo que lhe pode suceder durante esse período de espera. 

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