Elogio do Mahler artesão

Uma espantosa orquestra juvenil fez no seu terceiro e último concerto em Lisboa uma grande interpretação da Segunda de Mahler, uma obra que nos deixa ainda sem palavras.

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Gustav Mahler Jugendorchester Cosimo Filippini

São acordes poderosos que abrem a Segunda Sinfonia de Mahler. "Mas o que é isto, afinal de contas?", podem perguntar os espectadores com tamanha brutalidade sonora. A gente que enchia a plateia e o balcão da Gulbenkian parecia ter ficado suspensa no ar com a entrada fulgurante da extraordinária orquestra juvenil a que Claudio Abbado (seu fundador) decidiu atribuir o nome do compositor: Gustav Mahler Jugendorchester, como se de uma responsabilidade para o futuro se tratasse.

O primeiro andamento desenvolve-se como um poema sinfónico, em si mesmo completo. Mas a Segunda Sinfonia, gigantesca e incómoda, não se fica por aqui. Se o segundo andamento parece moderar o seu ímpeto "filosófico" quase provocador, a verdade é que nunca deixa descansar os ouvidos, e é assolado por novas interjeições de morte.

Ou talvez não devêssemos apressar tanto as interpretações, apesar do assumido lado programático desta magnífica sinfonia. É certo que a morte paira desde o início, nos extraordinários Ritos funerários, o Todtenfeier. Mas a música barafusta e resiste, não se deixa explicar em palavras, e muito menos esta Segunda Sinfonia, onde Mahler experimenta uma nova escrita para desenvolver uma nova linguagem para a orquestra, de efeitos e sonoridades inauditos.

Tudo a partir de Beethoven, sim, tudo a partir do compositor que para Mahler tinha inaugurado uma nova era. Por isso ele teve medo de fazer "como Beethoven", e incluir (como acabou por fazer) uma parte coral no último andamento: podiam achar que ele estava a copiar. Mas Mahler não copiava - ele pegava nos elementos de uma linguagem e nos materiais do seu instrumento - a orquestra - para exprimir ideias com a maior potência possível.

Tudo isto se ouviu muito bem na espantosa interpretação da Gustav Mahler Jugendorchester, onde apenas alguns atropelos de tempo no início do quarto andamento quebraram a extraordinária capacidade de concentração e entrega à música desta grande orquestra.

Mahler não nos deixa repousar num ambiente, num estado de espírito. Interessam-lhe precisamente as quebras e aquilo que está no meio, para arquitectar uma sinfonia de enorme intensidade onde as grandes afirmações são interrogadas permanentemente por pequenos fragmentos de dúvida. A dinâmica musical nunca terá atingido tais extremos até à altura (Mahler escreveu os cinco andamentos entre 1888 e 1894), do fortíssimo majestoso ao mais tranquilo pianíssimo, do mais complexo contraponto às interrupções de música popular, justapondo o humor e a mais solene seriedade, espacializando os sons (o que se ouve, lá longe?), sobrepondo o simples no meio das sonoridades quase enlouquecidas do terceiro andamento, o fabuloso Scherzo que é ainda hoje um dos mais extraordinários andamentos sinfónicos de sempre.

De sempre? Cuidado com Mahler, que puxa palavras grandes, e podemos deixar-nos levar. Ao ver esta orquestra a trabalhar, não esquecemos contudo que existe ali também um compositor-artesão. Um compositor que era ele mesmo intérprete (o Mahler maestro) e que, ao escrever a música, procura levar o mais longe possível um gesto (global) feito de muitos pequenos gestos dos músicos, pois cada detalhe ali interessa. Também por isso esta sinfonia é uma daquelas obras capazes de reunir o máximo prazer e entrega dos intérpretes com o máximo impacto emocional e intelectual nos ouvintes. "Mas o que é isto, afinal de contas?" O aplauso final, caloroso, emotivo, e bem longo, é apenas um sinal do que aconteceu. Alguma coisa houve que tocou bem fundo.  

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